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Afrin: entre a esperança convertida em resistência e o silêncio do mundo frente à invasão turca

Syrian-Kurds carry portraits depicting jailed founding member and leader of the Kurdistan Worker's Party (PKK) Abdullah Ocalan, as they march during a protest in support of Afrin on January 18, 2018, in the northern Syrian town of Jawadiyah. Turkish President Recep Tayyip Erdogan earlier in the week vowed to soon launch an operation against towns in Syria held by the Kurdish People's Protection Units (YPG), which Ankara considers "terrorists". / AFP PHOTO / Delil souleiman
Curdos sírios carregam retratos do membro fundador e o líder do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) Abdullah Ocalan, enquanto marcham durante um protesto em apoio a Afrin em 18 de janeiro de 2018, na cidade Jawadiyah , no norte da Síria.
O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, no início da semana, prometeu iniciar uma operação ofensiva contra cidades da Síria dominadas pelas Unidades de Proteção do Povo Curdo (YPG), que Ancara considera “terroristas”. / AFP PHOTO / Delil souleiman

Há duas semanas o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdoğan, começou uma campanha nos meios de comunicação turcos, em que ameaçava atacar o Cantão de Afrin, no norte da Síria, indicando que se as YPG/YPJ – Unidades de Proteção Popular, conduzidas em sua maioria por forças curdas – não se retirassem, começariam os ataque. O motivo seria a suposta segurança fronteiriça da Turquia.

Mas Afrin nunca disparou nem lançou uma pedra contra a Turquia; não o fizeram as YPG/YPJ nem as SDF (Forças Democráticas da Síria). Pelo contrário, estas forças estão há anos lutando contra o ISIS (Estado Islâmico), lutando uma batalha não só para liberar as terras do Norte da Síria, mas também para proteger a humanidade do terror do autodenominado Estado Islâmico. Uma tarefa pela qual são reconhecidos a nível mundial, junto das quais trabalham a Coalizão Internacional Anti-ISIS, para atingir o objetivo de erradicá-los completamente.

 

Não são terroristas. São o povo curdo, árabe, turcomano, assírio e suas unidades de defesa.

Todavia, e sob a acusação de que as Unidades de Defesa Popular posicionadas em Afrin – uma região ao Norte da Síria que tem fronteiras com a Turquia – eram um perigo para a soberania turca, as forças pró-Turquia invadiram, no dia 20 de janeiro por terra a região, violando os tratados internacionais e a soberania da Síria e aprofundando ainda mais o conflito na região, que desde sua liberação era a mais estável da Síria e de Rojava nos últimos cinco anos, onde curdos, árabes, turcomanos e outras etnias têm vivido junto em fraternidade sobre a base da autonomia democrática.

 

A responsabilidade russa

O povo de Afrin e as Unidades de Defesa Populares resistiram a esse primeiro ataque por terra, algo que já era esperado vindo de uma população que resistiu em Kobanê, Raqqa, Tabqa, etc., por essa razão a Turquia começou um ataque aéreo, em torno de 72 aviões bombardearam a região, destruindo o centro de Afrin e deixando civis mortos e feridos, incluindo várias crianças.

A Rússia controla o tráfego aéreo nessa região, segundo as negociações entre os países, que participaram das reuniões de Astana 8, para assegurar a paz e a estabilidade na zona. Em diversas ocasiões a Rússia fez menção a essa sua capacidade de resguardar a segurança da área, situação que também tornava a região muito estável, e que como resultado recebia milhares de refugiados que fugiam dos ataques em outras regiões. Porém, uma semana atrás, funcionários turcos viajaram à Rússia e negociaram uma via livre para seu ataque aéreo.

Três dias antes de começarem os ataques, pelos quais os números de mortos crescem a cada hora, com já dezenas de mortos e centenas de feridos, a Rússia, ao permitir o ataque aéreo da Turquia, se converteu num cúmplice indiscutível de Erdoğan no massacre levado a cabo contra civis em Afrin.

A respeito disso, Sipán Hemo, porta-voz das YPG (Unidade de Defesa Popular), disse que a Rússia os traiu e se manteve ao lado do Estado Turco na guerra. Cabe destacar que há apenas umas semanas a Rússia havia declarado que o povo curdo deveria estar representado nas negociações Sochi e que não era viável uma solução pacífica na região sem a inclusão dos curdos na mesa de discussão.

 

Debilitar a luta contra o Estado Islâmico

A Ministra de Defesa da França, Florence Parly, fez uma declaração a respeito dos ataques turcos contra Afrin, e disse que o Estado Turco deve parar seus ataques contra os curdos, pois isso debilitaria a luta contra o Estado Islâmico.

Essa declaração soma-se a uma longa lista de organizações sociais e políticas, intelectuais, acadêmicos, parlamentares, politicos, etc., que exigem, em todo o mundo, o cessar imediato dos ataques, através de diversas campanhas para defender Afrin, mas também para destacar o trabalho das milícias curdas que durante os últimos sete anos têm se sobressaído em sua luta contra o Estado Islâmico, frente aos fracassos constantes das potências imperialistas no terreno contra o Estado Islâmico.

 

O objetivo de reviver a Era Otomana

Erdoğan quer reviver a Era Otomana e invadir novas áreas como Al-Bab e Jarablus com seus ataques à região. Esse tem sido seu principal objetivo e desde as Primaveras Árabes e o ressurgimento da Irmadade Muçulmana, tem negociado e apoiado a diversas organizações terroristas, principalmente o Estado Islâmico, dotando-o de armas, dinheiro e permitindo-lhes a livre circulação en território turco.

E negociou com grupos armados ao redor de Homs, Aleppo e Damasco em troca de invadir Al-Bab, Azaz e Jarablus. O regime sírio, o Irã, a Turquia e a Rússia estiveram presentes na mesa de negociação. Agora querem utilizar a mesma estratégia em Afrin e Idlib, ou seja, querem Afrin em troca de renunciar a Idlib.

 

A “não tão conhecida” Afrin, onde dia a dia se cultiva a esperança

No norte da Síria, em uma região povoada majoritariamente por curdos, mas também por árabes, assírios, turcomanos e refugiados de outras etnias que também se assentaram na região, se deu início a uma profunda revolução: as terras foram coletivizadas, o poder político passou do regime fascista de Assad a um sistema de assembleias de todas as etnias; impulsionou-se a pela participação política das mulheres, se criaram as “Mala Jin” (Casas das Mulheres); se instalaram juntas de vizinhos para a resolução de conflitos e juizados populares específicos para o combate à violência de gênero ; das cinzas de um território destruído pelo Estado Islâmico e pelos ataques das potências imperialistas posicionadas na região, foram construídas escolas, hospitais, universidades, acampamentos para receber os refugiados e cooperativas de trabalho.

Esse processo, feito com base no Confederalismo Democrático, idealizado pelo líder do povo curdo, Abdullah Öcalan, recluso na prisão de Imrali na Turquia há dezenove anos, se cristalizou na Federação Democrática Autônoma Síria, ou melhor, do norte da Síria, onde convivem em constante diálogo povos de diferentes etnias e religiões: curdos, árabes, turcomanos, chechenos, yazidis, sunitas, chiitas, cristãos, etc.

 

As ruas gritam #DefendAfrin enquanto as potências internacionais se calam

Esse valioso exemplo de convivência pacífica, anticapitalista, revolucionária, igualitária, ameaça o status quo da modernidade capitalista que sustenta o poder político, econômico e militar das potências mundiais, por isso o silêncio é o cúmplice mais eficaz desta guerra. Apesar do evidente massacre ilegal que Erdoğan está levando adiante em Afrin, e apesar de que muitas superpotências combatem o Estado Islâmico junto às milícias curdas, os EUA, a Alemanha e a Rússia, principalmente, apenas emitiram chamadas de atenção para evitar baixas civis, mas entendendo que se trata de “um tema de segurança fronteiriça” e de “soberania estatal”, apesar de que nunca Afrin, nem as milícias curdas em geral, tenham atacado a Turquia nem nenhum outro elemento ativo destas regiões que não sejam o Estado Islâmico e as gangues terroristas islamistas do Oriente Médio.

Enquanto isso acontecem manifestações e ações em todo o mundo, Alemanha, França, Áustria, Iraque, Turquia, Reino Unido, Holanda, realizaram mobilizações reivindicando que se detenha o ataque a Afrin, sob a campanha #DefendAfrin, e repudiando o silêncio da imprensa internacional e dos países que direta ou indiretamente estão envolvidos no conflito do Oriente Médio. Ações globais se realizarão ao longo da semana na América Latina e na Europa, continuando a campanha para defender o povo curdo e a região de Afrin.

Nas últimas horas da segunda-feira (22/1) a pressão foi tal que até a Rússia somou-se ao pedido da França, que exige que o Conselho de Segurança da ONU se reúna para tomar medidas relacionadas ao assunto. Esperava-se que ao final do dia fosse firmada esta reunião.

 

Além do conflito: as vítimas e a crise humanitária

Três dias se passaram desde o primeiro ataque, continuam os bombardeios, com tanques e aviões, frente a uma resistência genuína, legítima, corajosa, com convicção revolucionária. O saldo de vítimas fatais revela a quem é direcionado o ataque: mulheres, crianças, homens, famílias inteiras, que se somam à resistência de seu povo, mas também se somam à lista de mortos e feridos, várias dezenas de assassinados pelas bombas do Estado turco, centenas de feridos, um povo massacrado, uma vez mais, pelo governo de Erdoğan.

É o começo de uma crise humanitária, em meio a uma das poucas regiões que davam e dão esperança e refúgio a suas populações frente ao conflito sírio, e diante dos olhos de uma comunidade internacional que silenciosamente lança as próximas cartas no jogo do petróleo, do poder, do mercado de armas e refugiados, e de terras férteis, dos recursos do norte da Síria, enquanto estão em jogo também milhares de vidas humanas.

 

Por Lucrecia Fernandez

 

Traduzido e cedido pelo Coletivo Heval

 

Fonte: http://kurdistanamericalatina.org/afrin-entre-la-esperanza-convertida-en-resistencia-y-el-silencio-del-mundo-frente-a-la-invasion-turca/

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Written by Murilo Gelain

Cientista Social e mestrando em Antropologia Social pela UFRGS. Desenvolve pesquisas sobre o uso de violência como ação política. Tem interesse em temas como economia, política e violência, além de cerveja, música e artes marciais.