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[Canadá] Antes dos Caminhões: a islamofobia como veículo para o fascismo

Foto de pessoas em uma manifestação dentro de carros e caminhões, com bandeiras canadenses.
Fato ocorrido em Toronto, Canadá, 27 de janeiro de 2022.

Autoria: Pixo

Este é o primeiro de uma série de artigos que tem como intenção analisar o cenário no território ocupado pelo Estado do Canadá no contexto do “Comboio da Liberdade” (“Freedom Convoy” na língua dos gringos), um evento massivo que gerou inúmeras interpretações (levante fascista? Revolta popular legítima?). Antes de entrarmos de fato no tema, é interessante que a gente tenha noção das particularidades do pensamento supremacista branco nesse local, e, antes de qualquer outra coisa, desfaça alguns mitos.

Passado e Presente Colonialista

A ideia de que o Canadá é, de alguma forma, “mais desenvolvido e educado” que outros países, é bastante recorrente. É comum que os estadunidenses considerem o vizinho nortista como uma opção segura, seja para contornar o péssimo sistema de saúde dos EUA, seja para fugir das consequências do caos climático e da constante escalada do autoritarismo. A sensação geral de “excepcionalismo” afeta a própria sociedade canadense, e a impede de encarar seus problemas internos. A verdade, como veremos, é que não existe país perfeito, muito menos rota segura para se esconder dos avanços do fascismo.

O Primeiro Ministro, Justin Troudeau (no cargo desde 2015), é um liberal nato, do tipo que sabe transitar muito bem entre os ciclos de notícia, e faz o possível para sustentar a visão sanitizada que a comunidade internacional tem de seu gabinete, colecionando mais manchetes sobre suas meias do que sobre suas políticas.

Recentemente o país e suas instituições se viram obrigados a encarar a inconveniente verdade sobre seu passado, fundado no massacre de populações indígenas.

A partir de nosso contexto geográfico é importante perceber que as mineradoras canadenses têm presença e influência praticamente invisível no Sul Global: entre pressão para mudança de regime na Venezuela e exploração ilegal no Brasil (tanto de ouro quanto potássio), e mesmo um caso de espionagem dentro do governo federal, nada parece abalar essa fachada do canadense cordial.

A Boa Diversidade é Não Conviver com o Diverso

Em uma pesquisa realizada em novembro de 2017, 65% dos entrevistados responderam que “a diversidade é uma característica que define o Canadá”; 60% concordaram que essa diversidade traz benefícios financeiros. Quase 70% declararam se orgulhar da reputação do país, como aberto e hospitaleiro; mas, também temos indicação de que os canadenses sentem que estão sendo obrigados a se adaptarem mais do que gostariam, conforme o Canadá se torna lar de outras culturas e etnias. 61% deles dizem que “muitas minorias estão buscando tratamento especial” e 59% que “muitos imigrantes não adotam ‘valores canadenses’”.

Quebec, 2017

A província de Quebec recebe muitos imigrantes fluentes em francês, por isso é comum a presença de pessoas vindas de antigas colônias francesas, como Senegal, Síria e Líbano. Muitos dessa demografia são muçulmanos, e a maioria vive em Montreal. Estatisticamente falando, não é um local de crimes violentos (apenas dois casos de homicídio em 2015), mas a população de aproximadamente 10.000 muçulmanos é frequentemente alvo de leis racistas e agressões criminosas. Em 2017 os casos de violência contra a comunidade muçulmana deram um salto assustador, crescendo três vezes em comparação com o ano anterior. Isso é explicado, em igual medida, pela islamofobia que atravessa toda a sociedade canadense, e pela intensa atividade de organizações de extrema-direita.

Sei que é um clichê mas, é preciso que façamos um esforço para lembrar a verdade dessa frase: a eleição de Donald Trump foi um pequeno abalo sísmico que agitou as massas reacionárias em todos os cantos do globo. No Canadá não foi diferente.

Em 2017 o Centro Cultural Islâmico de Quebec reportou inúmeros incidentes, tendo sido vandalizado com pichações de suásticas, e, durante o Ramadan, foi encontrada uma cabeça de porco embrulhada para presente com uma nota escrita: “bon appétit”. Poucas semanas depois, nesse contexto de pura intolerância, um homem branco de 27 anos invadiu armado a mesquita no momento em que a comunidade se reunia para rezar.

O trecho a seguir foi retirado de um perfil do assassino, publicado originalmente em 23 de abril de 2018 no Montreal Gazette:

Ele parecia só outro cliente comprando bebida no Couche-Tard às 7:37 p.m. em 29 de janeiro, 2017. Dezessete minutos depois, caminhou 500 metros até a mesquita e deu início a sua chacina. Filmagens do circuito interno o expõe agindo como um assassino de sangue frio, em alguns casos executando pessoas à queima-roupa na cabeça. Quatorze minutos depois o ataque havia acabado, ele chorou ao ligar para o 911, alternando entre frases suicidas e medo de que a polícia o matasse. Ele também se pergunta em voz alta se teria realmente matado alguém. Durante um interrogatório de três horas na manhã seguinte, Bissonnette aparentava estar delirante, alegando ter atacado a mesquita por estar preocupado que refugiados viessem para Quebec e matassem sua família. Ele disse que vinha sofrendo de depressão e ansiedade por mais de dez anos; recentemente ele vinha tomando um novo antidepressivo, pois o anterior não estava mais fazendo efeito […] Oito meses após o ataque Bissonnette parecia uma pessoa diferente quando disse à uma assistente social que suas declarações anteriores não eram sinceras. Na verdade, não ouvia vozes, ele lembrava do que havia acontecido durante o ataque. Bissonnette confessou à assistente social que “queria glória” e se arrependia de “não ter matado mais pessoas”. Durante as duas semanas seguintes, na sua cela, o homem de 28 anos – vestindo roupas largas, cabelo desgrenhado – parecia um adolescente triste, inofensivo e pálido. Raramente demonstra qualquer emoção.

Ainda na mesma reportagem, agora sobre suas relações familiares:

[…] Seu pai certo dia lhe enviou uma longa mensagem sobre “a conversão ao Islã, de várias pessoas que trabalham para a CIA”. Um amigo próximo disse que o assassino era “bastante preocupado com o que sua família pensava dele”. Quando uma testemunha declarou que seu pai havia “contribuído para a educação de um monstro”, Juiz Huot interviu, descrevendo seus pais como “vítimas colaterais” do ataque. Perguntado se ele tinha namorada, o pai disse que não, que seu filho tinha dificuldade de conhecer pessoas e possuía baixa autoestima. […] Um amigo declarou à polícia que a ideologia de Bissonnette era “bastante à direita”; que ele teria criticado muçulmanos quando passaram andando na frente da mesquita, e que era contra a imigração, pois “imigrantes mudariam a vizinhança” e “aumentariam o desemprego”. Perguntado se seu filho era ligado à La Meute, um grupo de extrema-direita anti-imigrantes de Quebec, ou à ideologias de esquerda ou de direita, o pai do assassino responde: “Não, ele é ordeiro”. Perguntado se o filho era racista, ele respondeu: “Não, ele tinha amigos negros”. […] Os conteúdos do computador de Bissonnette indicaram que ele tinha um interesse considerável em imigrantes e muçulmanos, e que era fã de Donald Trump, lendo obsessivamente sobre o presidente dos EUA e a suspensão de viagens que ele impôs sobre sete países de maioria muçulmana dois dias antes do ataque. Ele pesquisou sobre materiais relacionados ao Trump 819 vezes durante o mês. Bissonnette disse à polícia que em 29 de janeiro de 2017 ele surtou ao ler o tweet do Primeiro Ministro Justin Trudeau afirmando que iria aceitar os refugiados negligenciados pelos EUA. Segundo um relatório da polícia, não foi encontrado nenhum conteúdo criado pelo assassino que “poderia ligá-lo aos supremacistas brancos ou ideologia neonazista”. De todo modo, seu consumo de material de extrema-direita influenciou sua “opinião sobre imigração e a presença de muçulmanos em Quebec”.

Nas semanas que se seguiram os canais de mídia convencionais ignoraram a ligação do assassino com conspirações e figuras da extrema direita. Ao invés disso, tentaram colocar a responsabilidade do ato no tuíte do Primeiro-Ministro (e, por consequência, em sua intenção de receber os imigrantes).

A declaração de que o assassino não possuía ligação direta com os grupos neonazistas apenas prova que não é preciso relações íntimas com fascistas declarados para que alguém seja radicalizado a ponto de matar por uma causa odiosa como a supremacia branca. Continuamos testemunhando teorias da conspiração fascistas sendo repercutidas diariamente por apresentadores de televisão, políticos profissionais e outras figuras da mídia, sem que sejam responsabilizados. Em realidade, a “coragem” desses propagandistas oportunistas, não raramente, os alçam ao estrelato. Essas palavras não podem ser aceitas passivamente. Elas têm peso e influenciam na visão de mundo de milhares de pessoas. Quando um fascista fala em grandes canais de comunicação, todos nós perdemos.

Qual a cor do terrorismo?

Em declarações da época, Justin Trudeau fez um discurso consternado, chamando o ataque à mesquita de terrorismo apesar de, na prática, o assassino não ter sido judicialmente acusado desse crime. De acordo com especialistas, seria muito complexo enquadrar as ações como terrorismo, já que o código penal canadense define terrorismo como: “atos violentos se cometidos, integral ou parcialmente, para propósitos políticos, religiosos ou ideológicos, com a intenção de intimidar o público ou segmento específico do público”.

Pense um segundo a respeito… Não te parece que o ataque foi causado por motivos ideológicos com intenção de intimidar um segmento específico do público? Em entrevista, o especialista em criminologia e psicologia forense e professor da Universidade de Montreal, Louis Morissette, disse: “Se ele não foi acusado de terrorismo é porque eles não têm evidências. Não significa que não virá a ser”

Nunca veio. Destaco esse ponto sem a intenção de defender a tipificação de “terrorista”, porém, é nítido que, seja nos EUA ou no Canadá, existem religiões, ideologias e tons de pele específicos que podem ser considerados terroristas imediatamente por qualquer crime, enquanto o criminoso da pele branca sempre “merece uma observação mais técnica”.

Nenhuma iniciativa será tolerada

Após o crime a parlamentar Iqra Khalid propôs a “Motion 103”: uma moção não vinculante (uma medida sem peso de lei que na prática é apenas uma sugestão) que conclamava o governo canadense a formalmente “condenar a islamofobia em todas as suas formas de racismo sistêmico e discriminação religiosa” e a “reconhecer a necessidade de combater o aumento do clima de ódio e medo”, além de requisitar coleta de dados sobre crimes de ódio para embasar esse esforço. Na mesma semana, Khalid recebeu 50.000 e-mails com intimidações e ameaças de morte (não, você não leu errado, foram cinquenta mil e-mails).

Imediatamente os especialistas da guerra cultural, entre políticos profissionais e grupos racistas, iniciaram uma campanha de desinformação e ultraje alegando que a medida era “contra a liberdade de expressão” e acusando a comunidade muçulmana de “querer direitos especiais” dentro da sociedade. Em um evento em resistência à moção, organizado pela rede de direita Rebel Media¹, a apresentadora Faith Goldy² classificou a medida como “um embate de civilizações” e o ex-ministro de imigração, Chris Alexander, declarou que teve “muitos problemas com uma moção que fala de ódio disso, fobia daquilo, e não menciona a ameaça número um no mundo, o terrorismo islâmico jihadista”.

Manifestações de rua foram chamadas por uma aliança entre o PEGIDA³, Soldier of Odin4 e La Meute⁵, esse último trazendo o maior contingente de fascistas para as ruas: uns 150 em Montreal e outros 100 em Quebec. Essa foi a primeira vez que o grupo ousou pôr a cara na rua, até então vinham se organizando apenas na internet. Seus fundadores incluem vários veteranos do exército.

Até hoje basicamente nenhuma medida sugerida na temida “Motion 103” foi implementada. Após uma justificada mas, breve, comoção nacional, a maioria da população parece não ter aprendido nada. No aniversário de dois anos do massacre na mesquita, quando perguntado se a data não deveria ser formalizada como um feriado contra a islamofobia, o Premiê François Legault disse que: “não existe islamofobia em Quebec”. Legault, eleito em 2018 sob uma plataforma que prometia diminuir a entrada de imigrantes, em uma visita à França declarou querer receber mais imigrantes franceses e europeus. É nítido que a imigração, em si, não é a questão, e sim a cor e credo dos imigrantes.

É preciso salientar que esse clima de alienação e hostilidade não só fere emocionalmente e psicologicamente a comunidade muçulmana, mas também facilita o trabalho de recrutamento de organizações terroristas, como ISIS e Al Qaeda, entre a juventude muçulmana, da mesma forma que o ostracismo da juventude branca os empurra para organizações fascistas.

*****

A trajetória desse crime brutal e a tentativa de buscar uma resposta razoável dentro das margens do Estado, seguida de uma reação violenta da extrema-direita, nos ajuda a perceber como a identidade do conservadorismo canadense está intimamente ligada aos sentimentos xenofóbicos. Por um lado, o país tem orgulho de suas políticas de acolhimento aos imigrantes, por outro, a resposta à convivência com o diverso vêm na forma de um anti-liberalismo torpe, onde homofobia e racismo se tornam ferramentas dos “brancos oprimidos” contra uma população pacífica que é retratada como uma ameaça civilizacional.

Nos próximos artigos iremos finalmente observar os eventos que aconteceram imediatamente antes e durante o chamado “Freedom Convoy” que ocupou a cidade de Ottawa e gerou várias outras ações de desobediência civil pelo país.

Notas de Roda-pé:

1. A Rebel Media é o equivalente canadense do Breitbart (EUA), ou o Brasil Paralelo, inclusive repercute as mesmas “teorias” nojentas. Na visão da Rebel Media, mesquitas, ONGs e ações de solidariedade, tudo é um “front da irmandade islâmica” para avançar o “islamismo cultural”. Essa é a mesma retórica do livro Communist Revolution in the Streets (1967), uma das bíblias do anti-comunismo estadunidense.

2. Faith Goldy é ex-reporter do Rebel Media e conseguiu a proeza de ser demitida por ser racista demais. Ela deu duas entrevistas para o Daily Stormer, um dos sites neonazistas mais populares da internet.

3. O PEGIDA é a sucursal canadense dos “Europeus Patriotas Contra a Islamificação do Ocidente”. Grupo pan-europeu que usa o identitarismo como plataforma para seu discurso fascista.

4. Soldiers of Odin é uma organização fascista anti-imigrantes fundada na Finlândia em 2015. Usam estética de motoclubes com coletes de couro. Em 2018 dissidências do Soldiers of Odin outras duas organizações igualmente racistas: Storm Alliance e The Northern Guard.

5.  La Meute vem do Francês, que significa “A Alcateia”. Grupo fascista que cresceu bastante nesse período, em especial nos espaços digitais. São anti-imigração e buscam “restaurar uma herança francesa” no território canadense. Nos últimos anos a organização sofreu vários rachas e ao menos uma situação de desvio de verbas, mas ainda parece manter-se ativa, contrariando todas as expectativas.

Referências Bibliográficas:

The Majlis podcast, EP 6: “Dr. Sanober Umar on Racializing the Subaltern: Muslim Minorities in India and the Shapes of States Violences”. Disponível em: https://bit.ly/3bXI9s3

Leis Islamofóbicas no canadá disponíveis em:

https://en.wikipedia.org/wiki/Islamophobia_in_Canada#Bill_94_(Quebec)

https://en.wikipedia.org/wiki/Somalia_affair

https://rabble.ca/anti-racism/unfairness-bill-94-unveiled/

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Written by Pêdra Espindola