Por Mohamed Issouf Ag Mohamed e Mahfouz Ag Adnane
Considerando a impressionante falta de interesse do Brasil em relação aos acontecimentos no continente africano. Pois, já faz quase uma semana que o presidente democraticamente eleito do Níger foi sequestrado por membros de sua guarda, mas, como aconteceu no Mali, no Burkina Faso e no Chade, quase ninguém no Brasil, desde a grande mídia até o governo federal, debateu o assunto até o momento atual [segunda, 31/07/2023]. Por isso, decidimos escrever sobre o tema, no intuito de trazer esse acontecimento de fundamental importância no que diz respeito à estabilidade africana.
No início da manhã da quarta-feira, 26/7, os membros da Guarda Presidencial (GP), liderados pelo General Abdourahmane Tchani, presidente do Comitê Nacional para a Salvação da pátria (CNSP), bloquearam os edifícios presidenciais. No início foi uma mudança de humor para alguns, uma tentativa de destituição do poder do presidente Mohamed Bazoum para outros. As mediações iniciadas por antigas autoridades, a exemplo do ex-presidente Mahamdou Issoufou e do ex-primeiro-ministro Birji Rafini por um lado e a mediação do Presidente Tinubu da Nigéria, não deram certo. Na noite da quarta-feira 26/7, os militares anunciaram na televisão nacional a tomada do poder, o fechamento de fronteiras terrestres e aéreas e a suspensão das instituições. É crucial sublinhar que o golpe contra o presidente do Níger ocorre em um cenário regional de desconfiança em relação à França, que redistribuiu seu exército para o Níger depois de autoridades de Transição do Mali e do Burkina Faso o expulsaram de seus países.
Em aspecto interno, a antiga oposição política alega apoiar o golpe e seus motivos declarados são a deterioração da segurança e má governança econômica do governo do Bazoum. O que os militantes do presidente sequestrado qualificaram como uma “má-fé evidente”, porque, segundo eles, esses problemas existiam antes da chegada de Bazoum ao poder e a situação está pior nos países vizinhos liderados por governos militares que chegaram ao poder por meio da força, desde o ano de 2020 (Mali e Burkina).
Havia um discurso anti-Bazoum desde que ele era um pré-candidato e foi promovido pela oposição política nigerína, devido à sua cor clara e de origem árabe (moura). Em outras palavras, segundo analistas, a questão racial é um dos principais motivadores deste golpe. É importante ressaltar aqui, que essa foi a quarta tentativa de golpe que o presidente Mohamed Bazoum sofreu desde sua eleição em 2021. Sendo a primeira ocorreu dois dias antes mesmo de assumir o cargo. Seus rivais políticos exploraram regularmente essa justificativa – de que ele representa uma minoria étnica e, portanto, não era elegível para se tornar presidente do Níger – para impedir sua candidatura. Nesse contexto, é interessante lembrar que, geralmente, a oposição tem a maioria do poder político na capital e o PNDS, partido do presidente Bazoum, é mais popular nas periferias e regiões hauça, tamacheque e árabe. Por isso, quando considera-se a situação atual, a oposição controla a prefeitura de Niamey impedindo os apoidadores do Bazoum de se manifestarem. Dessa forma, como a oposição é forte na capital, não conseguimos ver realmente as opiniões da grande maioria porque assim que há um protesto contra o partido no poder, os militantes da oposição saem às ruas, em grande número, para mostrar sua desaprovação ao governo, sobretudo nos bairros mais ricos da cidade de Niamey.
A particularidade dessa crise nigerina é que diferentemente da do Mali e Burkina Faso, onde os militares vieram terminar uma vontade de manifestações populares, no Níger não havia problemas sócio-políticos nem crise institucional e manifestação antigoverno, por exemplo. Aliás o Níger é um dos poucos países da África que fica no meio de vários países com espaços com presença de grupos terroristas e integrantes de crime organizado. Contudo o governo do Níger continua lutando e conseguiu preservar sua integridade territorial completamente, mesmo estando entre, a Líbia e Mali que vivem em guerras contra grupos radicais desde 2012 e sofreu ataques terroristas a partir desses países, porém estas, em sua maioria, foram empurradas. Além disso, o Níger conseguiu proteger a sua fronteira no sul com a Nigéria que, por sua vez, sofre ataques de Boko Haram desde 2010.
Internacionalmente, as condenações atrasaram e só chegaram três dias após o golpe. A União Africana deu aos putschistas 15 dias para restabelecerem a autoridade constitucional. A França, principal aliado militar do Niger, suspendeu seu apoio no desenvolvimento e na defesa. A ONU, a mais importante organização internacional, exigiu a libertação imediata do presidente Bazoum e os EUA condicionaram a continuidade de seu apoio económico e na luta anti-terrorista, que é centenas de milhões, à volta do Presidente Bazoum ao seu cargo como o único presidente legítimo do Niger. A União Europeia, também, deixou claro que seus financiamentos nas areas de desenvolvimento e na defesa serão bloqueado até a restauração do poder constitucional.
O presidente Bazoum e sua família estariam bem de saúde, assegurou o presidente do Conselho Militar e ainda estão presos dentro da residência presidencial. Ontem, dia 30, conforme o emissor da CEDEAO, Mahamat Idriss Deby Itno, o presidente da transição da república do Chade (país vizinho do Níger que está passando por uma transição político-militar que foi aceita pela comunidade internacional) reuniu-se com a junta militar, o ex-presidente Issoufou (próximo da junta segundo vários dos nossos interlocutores) e o Presidente Bazoum na noite do domingo (30/07/2023).
Vale acressentar que por muitos, a aceitação do Mahamat como presidente do Chade, depois a morte do seu pai, pela União Africana e a Comunidade Internacional em 2021 foi o “pecado” que incentivou os militares em realizar o segundo golpe no Mali, na Guiné Conakry, no Burkina Faso e agora no Níger. Desse modo, tal mediação foi vista como uma aberração, pois, é absurdo enviar um “golpista” para negociar uma situação de golpe.
Atuação da CEDEAO
Depois de vários comunicados condenando o golpe militar e pedindo a libertação do presidente e sua reinstalação no poder, os líderes de países membros do bloco regional oesteafricano se reuniram neste domingo em Abuja, capital da Nigéria, para examinar a situação e estabeleceram sanções contra o país. As sanções anunciadas pela CEDEAO e pela UEMOA são extremamente severas, inexplicáveis e ilegítimas, devido à fragilidade económica do Níger e estas sanções atingem muito mais as populações do que a junta militar.
A CEDEAO parece não ter meditado sobre as lições oferecidas pela experiência do Mali, há quase 2 anos atrás. Suas injunções, intimidações e paternalismo correm o risco de fortalecer ainda mais aqueles, que serão responsáveis por liderar as transições políticas após esses golpes. Desse modo, na nossa opinião, a comunidade regional, que se apresenta como o cão de guarda da democracia, deveria fornecer melhores conselhos, alertar e tomar decisões preventivas, em vez de deixar acontecer o mal para aplicar as sanções ilegítimas e irrelevantes, que só aumentam o sofrimento de uma sociedade já vítima de pobreza e ataques de terroristas.
Podemos dizer que tem três cenários possíveis com a situação atual das coisas: O primeiro seria a continuidade da junta militar resistindo às ameaças e embargo que a CEDEAO, UEMOA, UA e o Ocidente aplicarão como aconteceu no Mali, Burkina Faso e isso poderia colocar realmente o Níger entre os novos aliados da Rússia na região saelo-saariana. A segunda opção é que a CEDEAO consegue que o presidente Bazoum seja reinstalado nas suas funções constitucionais. Se isso acontecer seria a segunda vez que o bloco regional oesteafricano devolve o poder a um presidente civil derrubado por militares, pois, a primeira vez na história da CEDEAO foi no ano de 1997, na Sierra Leoa, quando a força regional oeste africana, Ecomog, dissolveu a junta militar e seus aliados rebeldes na capital para reinstalar o presidente KABBAH no poder.
O terceiro cenário pode ser igual o que aconteceu na Mauritânia quando Ould Abdel-Aziz fez um golpe contra um presidente civil democraticamente eleito, com a mediação o governo senegales chegaram num acordo que o militar não continuasse no poder e que o presidente, também, não voltasse, porém foi escolhido um outro civil para liderar a transição de 3 meses e depois organizar as eleições para a volta do regime constitucional.
Sobre questões geoestratégicas e securitárias
O Níger permanece, até agora, uma trava estratégica na luta contra os grupos terroristas e essa crise no Níger pode ser o fim da esperança para a luta contra o terrorismo no Sael uma vez que há incerteza sobre o futuro das parcerias internacionais, especialmente europeias e norte-americanas, na luta contra o combate do terrorismo, porque os autores do golpe no Níger são adeptos de um discurso antiocidental e pró-russo e a bandeira russa é mais visivel nas mãos dos manifestantes pro-golpe que a do proprio Níger, como foi em Mali e Burkina Faso.
Um possível rompimento entre os militares nigerinos e seus parceiros internacionais pode fazer com que o vento esteja completamente a favor dos jihadistas do Estado Islâmico no Sael (EIS) Al-Qaeda no Magreb Isalmico (AQMI) que atuam na região perpetuando ataques contra civis e forças nacionais. Desse modo, os países costeiros do Golfo da Guiné também devem estar pensando já em um planejamento para conter a ameaça terroristas em suas fronteiras.
Outro aspecto interessante que merece atenção, também, é qa existência de muita retórica nas redes sociais africanas sobre como um militar é ideal e melhor do que qualquer civil, como presidente da república, para liderar a luta contra insurgentes jihadistas e livrar o país de políticos corruptos. Só que se os golpes militares pudessem realmente garantir a paz e o desenvolvimento sustentável, países como o Níger e Mali seriam umas das potências regionais do espaço CEDEAO e sem dúvida, há outras opções além do uso da força para derrubar líderes civis.
De maneira geral, o que está acontecendo na África Ocidental vai além de simples conspirações militares para derrubar regimes eleitos democraticamente. Ou seja, há também uma consequência mudança de paradigma na geopolítica global, sem fechar os olhos sobre as dificuldades locais e nacionais enfrentadas pelos cidadãos e particularmente a juventude. Portanto, a Rússia não pode ser culpada por sufar nas causas fundamentais da instabilidade em todo o mundo.
Mas a verdadeira pergunta é: como essa mudança radical de paradigma beneficiará a emancipação dessa parte do continente e da África como um todo? Qual será o impacto real dessas transformações?
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Mohamed Issouf Ag Mohamed
Estudante de Relações Internacionais (UFS).
Membro e pesquisador do Centro Internacional de Estudos árabes e Islâmicos da UFS (CEAI-UFS)
Mahfouz Ag Adnane
Doutor e mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/SP, mestre em História da África Contemporânea pela Universidade do Cairo. Membro e pesquisador da Casa das Áfricas, núcleo Amanar; membro do Centro de Estudos Culturais Africanos e da Diáspora – CECAFRO/PUC-SP.