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A infiltração neofascista no PDT

Os leitores do nosso espaço já tiveram contato com correntes políticas que se situam na marginalidade do debate político contemporâneo. Tais correntes misturam elementos de ideologias políticas aparentemente inconciliáveis, como o comunismo e o fascismo (ainda que se mantenham, em seu núcleo, fiéis à ideias que não vacilamos em classificar como neofascistas). Tal é o caso do Nacional-bolchevismo de Eduard Limonov e a Quarta Teoria Política de Alexander Dugin. Hoje, queremos chamar a atenção para o fato de que esse fenômeno está se reproduzindo na esquerda do Brasil e, mais grave, adentrando um dos partidos identificados com o campo da esquerda, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) — realizando, assim, a dupla tarefa de confusão teórica e legitimação de suas formulações no seio de nossos aliados. O principal grupo envolvido nessa infiltração é a Nova Resistência.

Antes de tudo, esse artigo é um alerta e um chamado ao combate. Não se trata de denunciar esta ou aquela organização ou partido, mas torná-los conscientes de sua infiltração por elementos que são inimigos históricos de tudo o que a esquerda representa, em especial o PDT, um partido que pode clamar para si uma tradição histórica que conta com a luta da FEB contra o nazifascismo — luta execrada por esses que hoje o infiltram. 

Nesse artigo, dividido em três partes, explicamos na primeira parte a origem desses grupos no Brasil, na segunda delineamos o processo de disputa que surgiu em seu seio pela liderança, do qual a Nova Resistência saiu vencedora até agora, enquadrando-a como pertencente ao neofascismo, e na terceira damos provas de nossa afirmação de que eles se encontram cada vez mais infiltrados na esquerda em geral e no PDT em especial. Cabe ao Partido lidar com essa degeneração interna e a nós da esquerda repelir vigorosamente essas tentativas de infiltração em nossos meios.



1. A origem.

1.1. O mundo virtual.

Como já dissemos, há algum tempo nosso espaço expõe a questão da fusão entre setores de esquerda e movimentos de extrema-direita sob a hegemonia dos últimos — a qual, quase sempre, resulta na esquerdização estética de movimentos fascistas [1]. O papel de Alexander Dugin nesse fenômeno, como veremos, é central e não é possível subestimá-lo, como artigos já publicados aqui demonstraram. Ao menos no caso brasileiro é possível afirmar que a atuação do neofascista russo dentro desse processo é multifacetada: ele atuou como um divulgador do pensamento neofascista no Brasil; como um estrategista político, ao fornecer uma estratégia de divulgação e infiltração para um novo campo neofascista brasileiro em formação; como um articulador transnacional, ao fornecer acesso às suas redes globais de influência a esse novo campo neofascista; como uma autoridade teórica a se seguir e a quem olhar para se orientar; e, por fim, como catalisador de disputas internas dentro do campo neofascista, na medida em que  o reconhecimento de Dugin e de figuras de suas redes passaram a ser disputados por membros do campo neofascista brasileiro, assim como acesso a ele e às suas redes, vistas como símbolo de mérito pessoal.

É possível dizer que a origem imediata dos grupos de extrema-direita que infiltram hoje a esquerda no Brasil, e em especial o PDT, foi o espaço virtual e, possivelmente, alguns grupos esotéricos. Os espaços virtuais em que circulava a base discursiva e militante do que é hoje em dia essa infiltração eram comunidades do Orkut tais como “Olavo de Carvalho nos odeia do B” que reunia pessoas de esquerda e de direita tendo em comum o desprezo pelo astrólogo e guru ligado ao atual governo Bolsonaro, já surgindo nesse espaço discussões sobre uma “grande síntese” que unificasse rejeições comuns ao liberalismo.  Sobretudo na comunidade “Olavo de Carvalho nos Odeia do B” circulavam críticas que instrumentalizavam autores perenialistas como Julius Evola e René Guénon (utilizados por Olavo de Carvalho em suas elucubrações) contra o próprio Olavo, elemento que será importante depois na aglutinação e organização do que é hoje a Nova Resistência.

Além desses espaços virtuais, alguns membros provavelmente se envolveram em círculos religiosos ligados a práticas esotéricas. É de se destacar entre estes o hitlerismo esotérico, dada a influência que tanto o nazismo quanto o esoterismo exercem sobre a Nova Resistência [2]. . O hitlerismo esotérico se refere a um conjunto de narrativas religiosas que fornecem um aspecto divino à figura de Adolf Hitler, se centrando em autores como o chileno Miguel Serrano (que, entre outras coisas, apoiou o golpe de Pinochet contra Salvador Allende), a inglesa Savitri Devi (responsável por elaborar uma fusão entre hinduísmo e Hitler, apresentando o último como um avatar de Kalki), o também inglês David Myatt (o qual se envolveu com o grupo satanista de mão esquerda [3] Order of Nine Angles) e o argentino Luis Felipe Cires Moyano Roca, fundador da corrente hitlerista esotérica Gnose ou Sabedoria Hiperbórea, que mistura gnosticismo e nazismo ao afirmar que a luta de Hitler contra os judeus seria eco de uma luta contra o Demiurgo, o Deus imperfeito criador do ilusório mundo material, referenciado aqui.  

1.2. Os Encontros Evolianos

A partir dessas experiências, passou a haver no início da década um esforço de organização maior por parte dos membros desse meio subcultural. O marco central desse esforço de organização foram os Encontros Nacionais Evolianos e o Encontro da Quarta Teoria Política, que se realizaram entre 2010 e 2014, além da hoje extinta Editora Austral.

O primeiro Encontro Nacional Evoliano ocorreu em 2010,  em João Pessoa, na Paraíba, em dezembro daquele ano. O seu organizador principal foi Dídimo George de Assis Matos, pesquisador ligado ao geopolítico uspiano André Roberto Martin. O evento contou com palestrantes como Rafael Daher (figura até hoje circulante nos meios ligados à Quarta Teoria Política, como o Centro de Estudos Multipolares – CEM, envolvido na divulgação de Alexander Dugin no Brasil) e Mateus Soares de Azevedo, também envolvido com o perenialismo. Ao fim do encontro, se buscou encaminhar a criação de um Instituto Evola, esforço que não foi bem sucedido. É possível ver um vídeo desse primeiro Encontro aqui.

A partir de 2011, o Encontro Nacional Evoliano passou a contar com duas edições realizadas no mesmo período, o que provavelmente envolveu alguma disputa interna por maior relevância dentro do bloco de organizadores: uma realizada em João Pessoa, na Paraíba e outra realizada em Curitiba, no Paraná. A edição paraibana continuou a ser organizada por Dídimo Matos, mas a curitibana passou a ser organizada pelo grupo que chamaremos de Grupo Austral, pois foi ao redor deste que se organizou a Editora Austral [5]. Foi  no Grupo Austral que surgiram pessoas que depois se tornaram importantes na organização da Nova Resistência e na consequente infiltração destes no PDT e na esquerda, como o já citado Raphael Machado. Na edição curitibana, foram convidados para palestrar Mateus Azevedo novamente, além de Rodolfo da Silva de Souza e Marcos Ghio [7], argentino difusor de Julius Evola que posteriormente passou a ser apoiador do Estado Islâmico, tal como disponível em sua página Centro Evoliano de América [8]. 

Em 2012, houve uma importante inflexão com uma série de palestras promovidas por Alexander Dugin em algumas capitais brasileiras. Nesse ano, Dugin palestrou na UERJ sob os auspícios dos professores Marco Antonio Casanova e Rodolfo da Silva de Souza (onde também se encontrou com o historiador uspiano Angelo Segrillo) e na USP e UFPB juntamente com o já citado André Roberto Martin. A visita de Dugin, como vemos, foi bem articulada por um núcleo de pessoas com alguma inserção na academia brasileira, mas não apenas por elas. Dugin aproveitou a visita para realizar apresentação na edição anual do Encontro Nacional Evoliano em Curitiba. Nesse evento, além de Dugin, se apresentaram também Marcos Ghio, o presidente da Frente Integralista Brasileira Victor Emmanuel Vilela Barbuy, o professor Cesar Ranquetat Júnior e o professor da UNIFESP Alexandre Hage.







Da esquerda para a direita: Cesar Ranquetat Jr., Marcos Ghio, Victor Barbuy, Alexander Dugin e Alexandre Hage.


Esse também foi o ano de lançamento das edições brasileiras de dois livros de Alexander Dugin, “Geopolítica do Mundo Multipolar” e “A Quarta Teoria Política”, além de “Imperialismo Pagão”, de Julius Evola. Como se pode ver, houve um esforço coordenado para garantir a difusão das ideias evolianas e em especial de Dugin na academia e nos movimentos de extrema-direita brasileiros. 

Apesar do convite à participação de Barbuy, é importante frisar que já nesse primeiro momento, ao menos parte relevante do Grupo Austral se propunha a disputar com a Frente Integralista Brasileira (e de forma geral com todos os grupos neofascistas nacionais de então) a liderança do neofascismo brasileiro. Isso se manifesta no prefácio à edição então lançada de Quarta Teoria Política, que classifica todas as agremiações neofascistas brasileiras como liberais-conservadoras, desqualificando-as.

Todavia, esse esforço sofreu um baque entre o fim de 2012 e meados de 2013. Por motivos desconhecidos, o Grupo Austral deve ter sofrido um racha nesse ano, que contrapôs uma fração que orbitou ao redor do blog Legio Victrix contra outra que manteve o controle da Editora Austral. Data desse período a disponibilização gratuita de material produzido pela Editora Austral na internet em sites como Scribd [9], provavelmente realizada pelo grupo reunido ao redor de Legio Victrix como forma de retaliação. A hipótese de ruptura interna se reforçará abaixo, como veremos.

Também dessa época data a defesa do separatismo sulista pelo grupo ligado a Raphael Machado, como se pode perceber pela divulgação no blog Legio Victrix do manifesto de uma Frente Popular Austral [10]. A semelhança imagética dessa Frente com a Quarta Teoria Política e a Nova Resistência se manifesta na estrela de oito pontas (ou estrela do caos), utilizada nos três casos, demonstrando a continuidade entre um e outro. A proximidade entre grupos simpáticos ao separatismo no Brasil e a Quarta Teoria Política não acabou aí, tendo essa tendência se atenuado apenas recentemente, talvez em razão de uma visão oportunista que julgou mais útil adotar uma imagem externa nacionalista. É de se notar que o próprio discurso da Frente é muito próximo do da Nova Resistência, como a defesa do municipalismo e de um anticapitalismo agrarista e contrário à modernidade, que tem também muito em comum com o defendido pelo Rural People’s Party dos EUA, do qual fez parte James Porrazzo, fundador da Nova Resistência inicial, nos Estados Unidos.

De qualquer modo, a atuação dos grupos ligados à Quarta Teoria Política sofreu uma mudança em 2013, em razão da ruptura interna e da crise que se instaurou a partir desse ano no Brasil. Em 2013, o grupo ligado à Editora Austral lançou seu último livro, “Hispano-América contra o Ocidente”, de Alberto Buela, durante um evento que pretendeu substituir os até então anuais Encontros Evolianos, a 1ª Conferência Iberoamericana da Quarta Teoria Política, realizada em Curitiba, que contou com a presença de Alberto Buela, João Arrais, Leonid Savin e Rodolfo Souza, além da figura de Victor Barbuy, como se pode inferir de uma publicação deste em seu blog pessoal [11]. É de se ressaltar que essa Conferência não foi divulgada pelo blog Legio Victrix nem tampouco o lançamento do livro de Buela, o que reforça a hipótese de que o grupo da Editora Austral tinha a essa altura já rompido com o grupo ligado a Raphael Machado, já que o referido blog vinha divulgando até então de forma constante as atividades relacionadas à difusão da Quarta Teoria Política, em particular os Encontros Evolianos. 

Em 2014, se realizou a última edição do Encontro Nacional Evoliano, dessa vez em São Paulo. Organizado novamente por Dídimo Matos, o evento contou com palestras de André Martin, Mateus Soares, Alexander Dugin, Antonio Caleari (figura de relevo do negacionismo do Holocausto no Brasil) e Alain Soral, francês ligado a grupos neofascistas internacionais que também buscam se infiltrar na esquerda — em especial, no chavismo. As atividades desse último encontro da Quarta Teoria Política passaram a ser novamente divulgadas pelo blog Legio Victrix, indicando que na briga entre os remanescentes do grupo Austral e os do grupo Legio Victrix, o último saiu vencedor. Outro sinal disso é o fato de que a Editora Austral nunca mais publicou nenhum livro.

De grande repercussão, essa edição se tornou um marco histórico na conformação da Quarta Teoria Política no Brasil. A partir daí, se instaurou um processo de disputa mais intensa pela autoridade de falar em nome do neofascismo de Dugin em nosso país, com o surgimento de várias organizações. Analisaremos esse processo na segunda parte do artigo.

2. Conclusão

Como vimos, o processo de maturação de um campo neofascista ligado à Quarta Teoria Política no Brasil é algo que data de antes de 2010. Não livre de contradições, foi em torno de um núcleo duro que contou com apoio acadêmico para se fortalecer que a Quarta Teoria Política se firmou no Brasil, criando um espaço político próprio e acumulando forças para empregar a sua tática de infiltração na esquerda. Veremos como essa acumulação se centrou em torno do grupo internacional Nova Resistência ao longo da próxima parte, desnudando como ao longo dessa disputa as vinculações dessa organização com a ideologia neofascista se mantiveram. 

REFERÊNCIAS

[1] http://elcoyote.org/da-exile-a-esquerda-canalha-a-geopolitica-dos-edgelords-e-o-aumento-do-nacional-bolchevismo-nos-estados-unidos/; http://elcoyote.org/uma-investigacao-sobre-aliancas-entre-a-esquerda-autoritaria-e-a-extrema-direita-parte-2/; 

[2] Exemplo disso é essa postagem em homenagem ao hitlerista esotérico Luis Felipe Moyano  disponibilizada na página da Nova Resistência dos EUA: https://openrevolt.info/2014/02/07/hyperborean-wisdom-of-nimrod-de-rosario-and-gnostic

[3] A via da mão esquerda constitui um tipo de espiritualidade reivindicada por uma série de grupos que orbitam e constituem parte do nazismo esotérico, mas não se restringe a este último. É importante apontar que o próprio Dugin defende em textos que ele pertence à via da mão esquerda: https://legio-victrix.blogspot.com/2012/03/o-gnostico.html.

[4] A Editora Austral foi responsável por realizar um esforço de tradução e divulgação das obras de Alexander Dugin e Julius Evola.

[6] Conforme disponível em: https://legio-victrix.blogspot.com/2011/09/ii-encontro-nacional-evoliano_12.html. Mantido pelo já referenciado criador da Nova Resistência brasileira, Raphael Machado, o blog Legio Victrix atua dentro da divulgação da Quarta Teoria Política há anos, sendo um dos pioneiros na estratégia do estabelecimento de uma aliança “vermelho-marrom”, isso é, a aliança entre esquerda radical e extrema-direita, sob a óbvia hegemonia da última. Nele, vemos misturados textos de Stalin com textos que defendem negacionismo do Holocausto, por exemplo. 

[7] Ver, a título dessas ligações: http://centroevolianodeamerica.blogspot.com/2018/06/semejanzas-entre-el-baron-ungern.html

[8]https://pt.scribd.com/doc/151428162/A-Quarta-Teoria-Politica

[9]  http://frentepopularaustral.blogspot.com/; https://legio-victrix.blogspot.com/2012/09/manifesto-austral.html

[10] http://cristianismopatriotismoenacionalismo.blogspot.com/2014/08/. A menção à presença de Barbuy se faz ao falar de um congresso em Curitiba onde ele teria se encontrado com Buela. Como Buela não esteve presente anteriormente em Curitiba, muito provavelmente se tratava da Conferência aqui referida.


ERRATA: Alguns trechos foram retirados por considerarmos as informações imprecisas ou ofensivas à honra dos citados nelas. Bos retratamos pelas imprecisões





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Written by el Coyote