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Por uma revolução social libertária e feminista: Como o anarquismo pode integrar a luta das mulheres?

 

É indubitável que a história do anarquismo não se difere da história da humanidade em si: é a história eurocêntrica dos homens, onde apenas os homens se rebelam, apenas os homens lutam por sua liberdade, uma história onde por muito tempo o espaço feminino tem sido marginalizado e, em muitas das vezes, até mesmo negado no meio libertário. Criou-se um cenário tão absurdo que mulheres como Maria Lacerda de Moura, Emma Goldman, Severine, Elvira Boni, Espertirina Martins, Voltairine de Cleyre, May Picqueray, continuam sendo tratadas como exceções que confirmam a regra do gênero dominante, deixando o resto das mulheres anarquistas esquecidas na sombra. Seria o anarquismo um privilégio apenas para os homens? Homens que em muitas das vezes falaram ( e falam) no lugar das mulheres, tentando traçar e definir o seu lugar nesse mundo e dentro dos círculos anarquistas que foram pensados por e para homens, silenciando suas vozes, ignorando suas demandas e anulando sua existência.

Proudhon, fundador do anarquismo francês, talvez seja o teórico mais polêmico nesse assunto, esbanja misoginia em suas obras. Em particular, na sua produção “Justiça na revolução e na Igreja”, Proudhon afirma que a mulher é “cortesã ou dona de casa”, ou seja, o papel feminino na sociedade é diretamente ligado aos desejos e necessidades masculinas, “a mulher é um diminutivo do homem que não possui órgão”, ele completa anulando totalmente a existência feminina afirmando ainda que “qualquer mulher que sonha com a emancipação perdeu por esse fato a saúde da sua alma, a lucidez do seu intelecto, a virgindade do seu coração” . E como se não fosse o suficiente, Proudhon achou, dentro de suas obras e de sua ideologia, o espaço pra defender o feminicidio: o marido tem o direito de matar sua esposa em algumas circunstâncias que incluíam adultério, impudência, traição,alcoolismo ou devassidão, gastos perdulários, furto e persistente insubordinação.

Alguns se opuseram a misoginia de Proudhon, como o anarquista francês Joseph Déjacque ,lembrado sempre pelas compas francesas do GDALE, foi um dos primeiros anarquistas a lutar pela emancipação feminina, “lutar”, porque até quando se trata da nossa luta, somos colocadas no lugar de meras espectadoras.Outros, antecederam a luta feminista propondo a revolução sexual como forma de resolver os problemas de gênero, afirmavam que se as mulheres fossem libertas das amarras sociais na questão do sexo e do casamento,seriam emancipadas. Infelizmente sempre há um porém, muitas das vezes essa bandeira foi levantada apenas para favorecer desejos masculinos.
Alguns ocultavam sua misoginia, deixando-a restrita ao seu lar. Tolstoi é um desses, Sophie, sua esposa, escreve relatos de como o marido era reprodutor de mecanismos opressivos dentro do lar no seu diário, em um desses relatos ela desabafa sobre a discrepância  entre o que ele aparentava ser e o que ele realmente era: ” e os seus biógrafos falarão de como ajudava os operários a carregar baldes de água mas ninguém saberá nunca que nunca deu descanso à sua esposa e nunca, durante estes 32 anos, deu aos seus filhos um único copo de água ou passou 5 minutos com eles para me dar a oportunidade de descansar um pouco, dormir ou sair para passear ou mesmo simplesmente recuperar de todos os meus partos “

O teórico individualista Max Stirner anula a luta das mulheres ao tratar os indivíduos apenas como seres assexuados. Ao primeiro momento pode parecer ótimo, não entender o individuo na sua singularidade de gênero, mas, se pararmos pra analisar bem, não levar em consideração a bi categorização da sociedade humana em classes de gênero “homem” e “mulher” é negligenciar toda opressão estrutural da dominação patriarcal sobre as mulheres. Talvez seja esse o limite do individualismo anarquista com a luta das mulheres: a incapacidade de analisar a sociedade através das relações de classe.

Podemos também citar o anarco-sindicalismo que, ao analisar a sociedade nas lutas de classe, prioriza a luta contra o capital e o Estado, deixando a luta feminina secundária a luta anticapitalista. Tratam a emancipação feminina como uma conquista a ser pleitada após a revolução, como se a queda do capital fizesse com que automaticamente o patriarcado fosse extinto. A libertação das mulheres dentro do anarcossindicalismo muita das vezes é negada enquanto a autonomia necessária do proletariado para sua emancipação  de classes é superatizada, como foi com a CNT espanhola, que se recusou ao reconhecer as mujeres libres. Emma Goldman ao visitar Barcelona, escreveu uma carta para Mariano Vázquez, secretario da CNT em Catalunha, questionando o quanto as Mujeres Libres foram negligenciadas pela CNT e FAI, que não ofereceram suporte ou aceitação:
“Eu estou muito surpresa que nossas organizações CNT , FAI e até mesmo juventudes tenha feito tão pouco para ajuda-las [mujeres libres] e tenha demonstrado tão pouco interesse. Você não acha, querido compañero, que seria do interesse da CNT e da FAI assistir as mujeres libres o tanto quanto pudessem?”.

Ao levantar esses pontos, alguns companheiros dizem que é “passado” e pode até ser, mas não podemos ignorar o fato de que a misoginia proudhoniana e o costume histórico do movimento anarquista de não considerar o feminismo como uma de suas principais preocupações nos assombra até hoje. Devemos então citar, por exemplo, que em 2012 durante uma feira de livros libertária na França havia um homem vendendo um livro intitulado “como flertar com militantes” e que uma companheira ao demonstrar seu incomodo com aquele absurdo foi acusada de estar o “insultando”? Ou que as denuncias de machismo dentro dos movimentos é tão numerosa que conseguimos montar um livro com isso (“tesoura para todas”)? Como ainda hoje, em 2017, sempre sentimos que temos que lutar para reconhecer nosso direito à autonomia em nossas próprias fileiras? Por que o feminismo ainda é um assunto delicado em círculos anarquistas e as mulheres que o abordam são acusadas de “sectárias” e “divisivas”? Por que as mulheres se sentem inseguras e/ou culpadas de levantar as questões estruturais de opressão de gênero dentro de suas organizações? Por que as mulheres são minorias em suas organizações e ainda são um número menor ainda entre as falas de uma reunião?Ou por quê a fala masculina é mais respeitada em assuntos de “difícil” análise? Com certeza não é porquê pensam mais ou são os únicos com conteúdo ali. E o talvez o assunto mais delicado: por que os espaços de militância continuam não sendo espaços seguros para as mulheres? O passado continua presente.

Existem vários fatores que influenciam para esse cenário. Primeiro a falta de conhecimento e atitudes concretas no que diz respeito a pauta feminista do movimento anarquista, palavras vazias de combate ao sexismo não servem de nada. Existe também a persistência em um anarquismo misturado com uma virilidade de guerra herdado dos séculos passados e a insistência em fingir que o feminismo é uma pequena ausência nas histórias das lutas políticas e que, assim como sua aparição em obras, as mulheres que lutaram foram poucas. Elas são exceções ou o reconhecimento da importância de sua militância que é? Existem também os companheiros que não são capazes – e há ainda os que se negam a isso- de reconhecer seus privilégios e abdicar dos mesmos. Não podemos esquecer também do fato de que nossos companheiros de luta não foram criados no modelo de sociedade pela qual lutamos. Eles são frutos de uma construção social de um mundo onde os sistemas de opressão agem em conjunto para esmagar os indivíduos : Estado, racismos, capitalismo e heteropatriarcado. Quando esse companheiro se declara anarquista, ele não passa automaticamente a se desvincilhar de seus privilégios, é preciso identificar e desconstruir os padrões de opressão que foram internalizados. É exatamente nesse ponto que o feminismo enriquece o anarquismo ao passar a integrar o mesmo. Então fazemos a pergunta que originou o titulo desse texto: como o anarquismo pode integrar a luta das mulheres? A resposta é óbvia e simples: através do anarcofeminismo.

“Mas, de onde vem o anarcofeminismo?”

Durante a segunda onda feminista de 1970 ( e marginalmente a ela também) o anarcofeminismo fez a sua primeira e singela aparição. Na Alemanha, França e Inglaterra as mulheres anarquistas criaram os primeiros coletivos chamados “anarco-feministas”, foi a primeira tentativa de unificar uma dupla militância, influenciadas pelo feminismo materialista, elas buscavam integrar a sua militância anarquista com as demandas da luta pelas mulheres. Lyne Farrow escreveu em 1974 “o feminismo pratica o que o anarquismo prega”. O termo anarco-feminismo apareceu pela primeira vez em 1970 em um editorial de um jornal do movimento baseado em Berkeley “It’s not Me Babe” que pedia por uma revolução anarquista-feminista ao lado de um artigo sobre Emma Goldman. A maioria das feministas anarquistas foi inicialmente radicalizada pelo meio político e cultural do movimento anti-guerra, mas foram suas experiências no movimento de libertação das mulheres, combinado com a influência de Emma Goldman, que as levou a desenvolver o anarquismo feminista como estratégia. À medida que as feministas lutaram para recuperar a história das mulheres, Goldman tornou-se um ícone feminista devido à sua defesa do controle de natalidade, do amor livre e da liberdade pessoal.¹ Mas foi apenas no início de 1990 que o anarco-feminismo se afirma por inteiro, graças à coletiva Bordeaux “Mujeres Libres” e o esforço de teorização iniciado pelas militantes da Federação das Mulheres Anarquistas em 1992.

“E o que é anarcofeminismo?”

Partimos do ponto que quando falamos de feminismo nos referimos ao movimente de mulheres que lutam pelas suas causas, novamente: “O feminismo executa o que o anarquismo prega”. Ora, não é um dos fundamentos do anarquismo a luta dos oprimidos através da autonomia dos indivíduos? Malatesta afirma que o anarquista deve lutar pela sua emancipação ao mesmo tempo em que luta ao lado dos oprimidos, porém, deixando os que sofrem com as injúrias dos mecanismos opressivos iniciarem seus discursos e suas ações.

Se não recriminamos o trabalhador de se organizar sem a presença do patrão, por quê continuamos a dizer que quando as mulheres se reúnem sem a presença da figura de opressão, estão sendo separatistas e sectárias? Por acaso será vetado a autonomia de luta?

E antes que rotulem proposta de não misturar como sectária, lembre-se que o objetivo nunca foi o separatismo mas sim a desconstrução das classes de gênero através da abolição das estruturas opressivas, o que não pode ser negociado com o opressor presente.

A relação de opressão social de gênero é estruturada em cima da exploração econômica das mulheres e da supremacia masculina, tal relação contribui para manutenção de padrões heteronormativos, por isso, reconhecemos como inimigo o heteropatriarcado, uma vez que para que haja uma total emancipação sexual é preciso extinguir todas as opressões que são exercidas sobre os que não se enquadram nos modelos de relações afetivo-sexuais impostos pelo sistema heteropatriarcal. É preciso urgentemente parar de hierarquizar os ismos e lutar contra o heteropatriarcado com a mesma força e disposição (e dando a mesma importância) que se luta pelo fim do Estado, racismo e capitalismo.

“O anarcofeminismo é a feminização do anarquismo?”

Sim, pois feminizar significa dar um caráter feminino aquilo que não o tem (ou não o tem o bastante), são mulheres militantes anarquistas que pleitam pelo espaço que lhes tem sido negado há muitos anos, são mulheres que cansaram de viver a sombra de uma militância que se diz libertária mas que continua a repetir os mesmos papéis de gênero do modelo social que visa abolir, são mulheres que entendem que não precisam de lutas separadas porquê ambas se completam, são mulheres que incomodam porquê propõem uma análise rigorosa das relações opressivas impostas entre o heteropatriarcado e os outros.

O anarquismo que não engloba o anarcofeminismo é deficiente, parcial e opressivo, enquanto não reconhecermos as estruturas de poder que estão sendo reproduzidas dentro do movimento, ele se tornará inútil e obsoleto, como foi dito pelas companheiras do No Pretense na conferência anarquista de 2009 “Não haverá futuro para o movimento anarquista se ele também não se identificar como um movimento anarquista feminista”, a simbiose do anarquismo com o feminismo é indispensável e as minhas companheiras, faço um convite: existam! Debatam, coloquem mais suas opiniões, escrevam, falem, ocupem espaços em todos os meios e em todos os lugares, vamos nos dar os meios, vamos utilizar de nossa autonomia sem esperar por uma autorização, para que possamos alcançar uma revolução social, libertária e feminista!
1-https://www.akpress.org/perspectivesonanarchisttheorymagazi…

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Written by Larissa Naedard

Anarcofeminismo, especifismo e axé.