“Tudo que os homens escrevem sobre as mulheres deve ser suspeito, pois eles são, a um tempo, juiz e parte.” POULLAIN DE LA BARRE
Essa semana foi protocolado o Projeto de Lei 3369/19, que pretende agravar a pena à denúncias falsas de crimes contra a dignidade sexual. De Carlos Jordy, do PSL, o PL foi apelidado “Lei Neymar da Penha”, em referência à recente denúncia de estupro contra o jogador.
“Denunciações caluniosas já são graves e absurdas por si só, mas quando envolvem estupro, isso destrói a vida do acusado porque não existe crime mais abjeto do que esse. Isso deixa todo mundo indignado” Deputado Carlos Jordy, PSL
Quem disse que as leis são feitas pelo olhar do homem não foi Simone de Beauvoir, e sim a ministra Carmen Lúcia, em 2018, durante uma convenção promovida pela Google. Segundo ela, “Leis são feitas majoritariamente por homens sem levar em consideração a nossa realidade, que é diferente e que se soma à do homem.”
“Nós podemos ser maioria no Brasil em termos de formação intelectual, mas em termos de posicionamento no mercado de trabalho, é exatamente e, infelizmente, demonstração de que a igualdade ainda não aconteceu entre homens e mulheres” Ministra Carmen Lúcia
O princípio da imparcialidade é um dos preceitos que garantem a legitimidade de um processo, sendo importantíssimo ao Estado de Direito. Uma estrutura que busca um ideal de imparcialidade, para fazê-lo valer, deve se basear no pressuposto da igualdade de condições entre partes. No entanto, tal igualdade não faz parte da realidade material, que é construída através de relações desiguais de poder. Portanto, no exercício da justiça, tal igualdade deve ser proporcionada: é preciso tratar os iguais com igualdade e os desiguais à medida de suas desigualdades. Partindo desse pressuposto, não se pode tratar desiguais da mesma forma sem cometer uma injustiça. Este é o princípio da isonomia.
Segundo um levantamento do CNJ, o juiz brasileiro é majoritariamente homem, branco, casado e católico. Os resultados do perfil padronizado da magistratura brasileira refletem nas decisões: quando se julga casos envolvendo conflitos de gênero, julgamentos morais se sobrepõem a argumentos técnicos. São inúmeros os casos¹²³ em que, a despeito de evidências, depoimentos, laudos técnicos e até flagrantes, as sentenças acabam por absolver os acusados baseando-se em valores morais e religiosos carregados de machismo. O “dever ser” é bem diferente do “ser”.
“A imagem da autora na sua forma grosseira demonstra não ter ela amor-próprio e autoestima.”
Desembargador Francisco Batista de Abreu, sobre um caso de revenge porn
Voltando ao ideal da imparcialidade, é ingênuo presumir que haja igualdade de condições em litígios envolvendo partes pertencentes a polos opostos da camada social. Aqui evoco o princípio da vulnerabilidade, do Direito do Consumidor, onde se considera o consumidor enquanto a parte frágil, vulnerável, tendo inclusive o ônus da prova invertido, para facilitação da defesa de seus direitos. Para que prevaleça o princípio da isonomia, que versa sobre a igualdade de todos os cidadãos sem distinções, tal princípio deve ser utilizado de forma expansiva em outros casos onde há flagrante desigualdade entre as partes, estando uma em situação de vulnerabilidade social em relação à outra.
“Leis são feitas majoritariamente por homens sem levar em consideração a nossa realidade, que é diferente e que se soma à do homem.”Ministra Carmen Lúcia
O Direito não existe à parte da realidade material e seus operadores devem comprometer-se com a verdade e a busca pela justiça ao solucionar litígios envolvendo pessoas pertencentes às minorias. Crimes contra a dignidade sexual compõem o rol de conflitos envolvendo minorias, já que são praticados majoritariamente contra mulheres e crianças. Em casos de estupro, as vítimas estão em situação de vulnerabilidade em relação aos acusados, sendo a parte frágil do conflito. Um Direito penal do inimigo, focado no criminoso, impede e prejudica a análise técnica necessária para uma solução satisfatória do caso, pois não considera em momento algum a perspectiva, os anseios e necessidades da vítima.
Por ser um crime em que dificilmente há testemunhas, é comum restar apenas o depoimento de quem denuncia. Há, inclusive, decisões do STJ que lhe concedem validade probante. Infelizmente, as argumentações que consideram apenas a igualdade formal acabam servindo ao lado mais forte do ponto de vista social, ou seja, aos acusados.
Isto posto, cabe aos operadores do direito decidir buscar a justiça através da compensação formal da desigualdade material, ou manter e corroborar com a estrutura social vigente. Quando se advoga por preterir o direito de denúncia em favor da reputação do acusado, se corrobora com a violência denunciada. É necessário que se reconheça as relações de poder presentes na estrutura social para que se possa efetivamente almejar o “fazer justiça”.
“O mais importante dos instrumentos (para combater os crimes contra a dignidade sexual) ainda é a denúncia.”
Não pretendo, com este artigo, advogar pelo ativismo judicial. O que desejo é lançar luz às demandas dos grupos de minorias para com o Direito, de forma que seus direitos sejam assegurados e devidamente tutelados. Não basta criar leis que qualificam crimes específicos e agravam penas, como foi o caso do feminicídio. Promover cursos de conscientização acerca de consentimento e estupro, tendo como exemplo os que surgiram com a Lei Maria da Penha, referente à violência doméstica, juntamente com a expansão das redes de apoio à vítimas de crimes contra a dignidade sexual, para assegurar proteção antes e depois das denúncias, bem como o atendimento especializado necessário para a coleta de exames são algumas das medidas necessárias no sentido de combater o estupro e a violência sexual. No entanto, o mais importante dos instrumentos ainda é a denúncia.