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“A maior vitória que conseguimos foi as mulheres acreditarem em si mesmas”

Nesrin Abdullah

Nesrin Abdullah, comandante e porta-voz das Unidades de Proteção da Mulher (YPJ), foi presa durante o regime de Bashar al Assad por defender seus direitos como curda, e hoje atua nas forças de autodefesa do YPJ, parte integrante da revolução de Rojava que, desde o início de 2012, construiu uma sociedade de coexistência interétnica e intercultural, baseada nos princípios da democracia direta, da libertação das mulheres dentro da estrutura da Federação Democrática do Norte da Síria e, da ecologia.

Qual é a situação em Rojava após o genocídio em Afrin cometido pelo estado turco, as recentes ameaças de invasão, o bloqueio econômico e a derrota do ISIS?

O bloqueio econômico contra o cantão de Afrin fez com que um saco de pão com quatro unidades custasse quinze euros, só uma família inteira tem condição de pagar esse valor. O bloqueio em Cizire afeta também o campo da saúde, não há medicamentos e material suficiente para cuidar de pessoas feridas. O fato é que muitos perderam suas vidas por isso. Em 2014 não tínhamos nem combustível para o aquecimento e as mães queimavam suas próprias roupas para aquecer seus filhos, elas também passavam muito frio. Mais de 50 mil crianças perderam a vida devido às baixas temperaturas. Muitos ansiavam pelo Estado sírio… No ano seguinte eles plantaram algodão, porém quando o inverno chegou, eles tiveram que procurar por alternativas. A economia não é controlada pela sociedade, mas pelo poder. É uma punição “ou você se adapta ao meu sistema ou fica com fome.”

Existe uma intensa relação entre economia e política. Se conseguirmos dominar ambos, vencemos. Por esse motivo, as primeiras cooperativas eram de mulheres. Por conta das medidas de embargo pensamos em desistir, mas abrimos as cooperativas e na antiga Síria plantamos pomares. Havia pessoas que não possuíam terra e atualmente têm. Por outro lado, em Afrin a situação é muito séria. O estado turco fez uma mudança demográfica e uma assimilação cultural. Não há mais pessoas de Afrin, apenas 20% sobreviveram de milhares assassinadas por bombardeios como o de 72 aeronaves e milhares de outras que fugiram dos campos de refugiados.

Os documentos de identidade – que eram da Síria – agora são da Turquia. Todos os professores em Afrin são da Turquia, bandeiras, etc., e onde anteriormente viviam com diferentes religiões, agora é obrigatório que todos sejam muçulmanos. Eles destruíram todos os templos. Eles querem eliminar tudo o que foi construído pelos curdos. Além disso, há sequestros todos os dias e violações às mulheres.

No nível ecológico, Afrin era o centro das oliveiras e milhares foram destruídas, porque a oliveira é um símbolo de identidade na região. Eles abriram uma base de fronteira para roubar tudo o que está em Afrin e levar para a Turquia. A Síria não pode nem concordar, pois estão fazendo isso de qualquer maneira. A maioria das mulheres de Afrin é alevita e agora elas não podem sair de casa sem um hijab. Eles sequestram mulheres. Muitas das que foram estupradas não falam a respeito porque é uma mentalidade muito conservadora, o que também afetou a saúde mental da população, levando a uma situação muito grave em que muitas pessoas sofreram infartos devido ao impacto psicológico. A derrota do ISIS levou a um aumento do moral, especialmente para as mulheres.

Rojava é uma das regiões que recebeu mais refugiados durante a guerra da Síria, em que situação eles vivem agora?

Apesar de estar em guerra, é a região que mais recebeu refugiados. Eles vêm de outros territórios sírios porque sabem que nos preocupamos com eles, como é o caso dos yazides que fugiram de Basur (Iraque). Atualmente, 400 mil pessoas vivem no campo de refugiados em condições muito adversas. Estamos fazendo tudo que podemos, mas nossa força tem um limite. As Nações Unidas dizem que nos ofereceram ajuda e que negamos, mas não é verdade, não temos nenhum apoio.Em 23 de março, a SDF anunciou o fim do Daesh. Qual é a abordagem com os milhares de pessoas do ISIS que estão em Rojava?

Homens estão na prisão e mulheres e meninas estão em acampamentos específicos. Não houve nenhum julgamento para separar até mesmo os filhos de mães que foram membros do ISIS, e é por isso que eles ainda estão juntos. Nós tentamos retornar aos seus países de origem ou de onde eles os julgam, mas isso não foi possível, nenhum estado nos ajudou. Estamos tentando promover um julgamento internacional para esses membros em Rojava, mas o único país que nos respondeu foi a Alemanha. O estado sírio, por exemplo, não quer aceitar isso porque tem a legitimidade reconhecida.

Por outro lado, o Estado Islâmico ainda tem células adormecidas e o impacto psicológico que causou na sociedade é muito grande, fazendo com que muitas pessoas simpatizem com elas. Muitos deles estão em campos de refugiados em uma situação bastante séria. Damos-lhes tudo o que podemos, mas não temos nenhuma ajuda e estamos com fome, há risco de doenças… E as pessoas não podem ir para casa porque nas áreas liberadas o EI colocou muitas minas que ainda precisam ser removidas.

Qual tem sido o papel do YPJ na luta contra o ISIS e o patriarcado?

O YPJ não é apenas uma força armada, é uma legítima força de autodefesa. Não atacamos ninguém, mas nos defendemos. Porque não somos um exército, somos um grupo de autodefesa. Nós pegamos em armas porque eles estavam nos atacando. A maior parte do nosso trabalho tem sido organizar as pessoas, a parte da autodefesa é a menor. O YPJ faz parte de um sistema de auto-organização social baseado nas comunas, seus comitês (político, educação, justiça, ecológico, social …) e seu sistema de co presidência, sempre foram formados por um homem e um mulher. O objetivo é que as pessoas se organizem e que todas as mulheres sejam organizadas. Nós fizemos de cada casa uma escola, desenvolvemos academias, mídia feminina e uma ciência de mulheres, a jinealogia. Além disso, nenhum homem pode tomar decisões sobre mulheres. Antes das assembleias mistas, as mulheres se reúnem e partem com decisões compartilhadas. E se houver uma agressão sexista, nenhum homem pode tomar decisões sobre isso, apenas mulheres.

Não respeitamos as fronteiras. Quando Sinjar foi atacada nós atravessamos Bashur para salvar as pessoas que estavam presas e agora a unidades de forças das mulheres dali foi criada. Até agora, liberamos 180 mil pessoas nas mãos do ISIS. Entre 2014 e 2019, ajudamos mais de 700 mil yazides. Não pararemos enquanto houver mulheres sob seus domínio. Chamamos-lhes de forças de defesa das mulheres porque agora é uma força internacional, não temos mais nome em curdo. Queríamos dar nossas ferramentas para todas as mulheres. Agora também há forças de autodefesa de mulheres árabes, sírias e assim por diante. Nosso objetivo é que nenhuma mulher esteja sozinha. Neste momento somos mais de 35 mil mulheres no YPJ, 700 das quais morreram durante a guerra e 3 mil foram feridas. A maior vitória que conseguimos é que as mulheres acreditem em si mesmas. A revolução não é apenas território livre. Uma unidade emocional entre as mulheres é muito importante. A relação de parceria é muito forte. Quando alguém morre dizem: “Ai, companheira”. Pela liberdade, os seres humanos estão dispostos a pagar muito caro.

Uma vez minimizada a força do Estado Islâmico, que ameaças vocês devem enfrentar e quais novos objetivos que representam?

Por um lado, há uma ameaça muito grande de reconstrução do estado sírio, cuja única solução seria esquecer tudo o que construímos e retornar ao sistema antes da guerra. E, por outro lado, o Estado turco com sua vontade expansionista querendo ocupar todo o norte da Síria, como fez em Afrin. E sabemos que, se o estado turco cumprir sua ameaça haverá uma situação pior que a de Afrin. As ameaças do estado turco são muito importantes, mas estamos diante de um silêncio global.

A situação de greve de fome contra o isolamento também é muito séria, já que eles não nos permitem ver os prisioneiros que apoiamos. Além disso, temos um bloqueio: no norte temos a Turquia que não nos permite entrar em nada; a oeste o estado sírio que está nos bloqueando e ao sul o governo KRG em Bashur (sul do Curdistão) que também está fechado. Um de nossos objetivos é ativar o autogoverno na Síria e reconhecer as áreas que foram liberadas.

Como autogoverno democrático, acreditamos que deve haver uma saída para toda a Síria porque sabemos que qualquer proposta que vem de fora não pode dar uma boa resposta às realidades que estão dentro da Síria. É necessário criar um sistema democrático que, apesar das diferentes nações, religiões, etc., todas as pessoas possam viver lá democraticamente e com todos os seus direitos. Nosso objetivo não é nem dividir a Síria nem estar em um sistema que não seja democrático, queremos uma Síria unida com direitos para todos.

Houve uma tentativa de negociação com Basahr Al Asaad, qual tem sido a resposta?

Houveram duas reuniões para encontrar uma solução política entre nós e o Estado sírio. Preparamos um roteiro com onze pontos para chegar a um acordo e infelizmente até agora não obtivemos qualquer resposta clara da sua parte. Atualmente não há diálogo com esse estado.

E houve tentativa de negociação com o resto dos países da fronteira, como por exemplo, o governo de Barzani no Curdistão iraquiano (KRG)?

Até agora tivemos reuniões diferentes para chegar a uma unidade nacional entre Rojava e Basur. Existe um diálogo entre nós e acreditamos que, no final, chegaremos a um acordo.

E com relação a outros estados do mundo?

No nível internacional estamos sempre excluídos. Em todas as reuniões que ocorreram na Síria em escala internacional não convidaram o autogoverno democrático, como no caso da reunião de Genebra. Até agora, nem mesmo fomos autorizados a participar dessas reuniões e Afrin é um exemplo claro do fato de que há um silêncio internacional contra a invasão e as ameaças do Estado turco. Para que possamos assumir o enfrentamento sem que Rojava seja bombardeada é necessária uma exclusão da zona aérea. As Nações Unidas devem permitir às ONGs e às empresas que querem se solidarizar com a região que possam instalar ali seus escritórios. Existe uma ameaça à eliminação do nosso povo e se faz necessária uma garantia internacional que elimine esse perigo contra nós.

Qual é o papel da União Europeia?

Existem muitas forças internacionais na Síria, não apenas a da Rússia, mas sim a de todas, inclusive do Irã. Todos admitem que nosso projeto político será a garantia de um sistema moderno, democrático e bom na Síria. Mas até agora, eles não ofereceram nenhum projeto que tenha saída democrática e que seja aceito. Enquanto as política propostas não respondam aos seus próprios interesses e negociações, não haverá solução democrática para os povos. Há um genocídio, o assassinato do povo e há um silêncio mundial. Há também uma migração forçada, milhares de pessoas que tiveram que deixar suas casas… Se eles realmente quisessem alcançar uma saída democrática poderiam fazê-lo, mas não, eles não têm projeto para isso. Tanto que até agora o governo de Bashar Al Assad ainda governa a Síria.

E quanto aos movimentos sociais e lutas revolucionárias na Europa?

Gostaria de agradecer aos movimentos sociais, que estão fora dos estados e da centralização do poder, a todos os povos e à todas as pessoas revolucionárias que nos deram apoio na luta. Suas ações de solidariedade sempre nos incentivaram a continuar. Acreditamos neles que, com suas lutas, apoio e solidariedade, possam suprimir os estados e buscar um resultado democrático. Até porque eu acho que a força dos movimentos sociais é muito maior que a dos poderosos. Acreditamos que eles podem nos ajudar, apoiar e ter força para que possamos ter uma saída e viver como pessoas com a garantia dos nossos direitos humanos.

Tradução livre e edição da entrevista originalmente publicada no jornal Directa – jornalismo cooperativado pela tranformação social.

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Written by Anelise Csapo

é jornalista formada pela PUC-SP e pesquisadora com pós graduação em Psicologia Política pela Each-USP.