Neste sábado (23/12), a secretaria de defesa social de Pernambuco confirmou que o corpo em estado avançado de decomposição encontrado num loteamento na zona oeste de Recife pertence a Remís Carla Costa, desaparecida há 7 dias. Remís tinha 24 anos, era estudante de pedagogia da UFPE e companheira de luta. Como muitas de nós, ela vivia num relacionamento abusivo do qual não conseguia se livrar. Ela foi agredida. Ela pediu ajuda. Ela foi ignorada e, como muitas de nós, foi morta pelo próprio parceiro. A cova rasa na qual foi encontrada ficava há apenas 400 metros da casa do seu namorado, que depois de mata-la, participou das vigílias e compartilhava postagens de “Procura-se” facebook. O assassino se chama PAULO CESAR DE OLIVEIRA e confessou o crime no ato da prisão. Remís chegou a conseguir uma medida protetiva contra Paulo, medida esta que nunca valeu porque, segundo a polícia, ele nunca foi encontrado para assinar a notificação.
Remís é mais uma nas estatísticas do Brasil, que tem a quinta maior taxa de feminicídios do mundo segundo dados da OMS. Mas eu não quero só lembrar Remís, eu quero falar da cultura capacitista que lota as caixas de comentários em notícias como essa e do quanto essa cultura também é parte do problema.
É normal ler comentários onde se referem aos agressores como “monstros” e “doentes”, como se crimes que nem o de feminicídio não pudessem ser cometidos por homens mentalmente saudáveis. Um crime tão perverso como o de Remís Carla realmente pode chocar algumas pessoas, mas num país onde 4 em cada 10 mulheres já sofreram violência de seus parceiros, faz sentido patologizar o agressor? Dentro dessa lógica patologizante, quantas dezenas de milhões de homens brasileiros sofrem dessa doença mental não diagnosticada que os faz agredir e até matar suas parceiras e serem socialmente ajustados em todas as outras áreas de suas vidas que não envolvem mulheres? E por que os homens brasileiros têm mais propensão a essa tal doença que os homens dos outros 78 países abaixo de nós no ranking mundial de feminicídios? Então, pessoas com sofrimento mental são as grandes responsáveis pela violência no mundo¿ Em maio do ano passado, uma adolescente de 16 anos foi estuprada por 33 homens no Rio de Janeiro. Estavam os 33 loucos, fugindo de algum hospício? Estatisticamente falando, qual a chance de 33 “psicopatas”, como foram chamados na época, se encontrarem pelo mundo e marcarem um estupro coletivo? Minha vida seria melhor se eu acreditasse que a violência contra a mulher pode ser resolvida com comprimidos e internação. Infelizmente, o problema é bem mais complexo.
Eu sei que é difícil para alguns de nós aceitar que violências bárbaras contra mulheres revelam, antes de qualquer coisa, que a nossa sociedade cria homens para acreditar que a vida das mulheres é coisa de menor importância. Mas é necessário. É urgente que nós reconheçamos que, apesar de uns poucos psicopatas e pessoas com outros transtornos também cometerem violências, eles não são nem de longe a maioria dos homens que matam, estupram e espancam. Pelo contrário, neuroatípicos são muito mais propensos a serem vítimas de violência do que perpetradores. Quando nós patologizamos a violência contra as mulheres, além de construirmos uma imagem bizarra de pessoas com sofrimento mental como sendo perigosas, também naturalizamos a violência ao invés de trata-la como legado da cultura. Tratar homens violentos como doentes remove parte de suas responsabilidades porque concede a eles um perdão biologicamente fundamentado para suas ações, afinal, ninguém tem culpa de estar doente. A violência de homens contra mulheres está assentada na masculinidade tóxica e na forma como a nossa sociedade patriarcal diz aos homens, diretamente ou através de mensagens muito sutis, que mulheres são seres inferiores e descartáveis. Defender que estes homens são doentes ou anormais, é trata-los como vítimas passivas de transtornos não tratados, o que definitivamente não é o caso da grande maioria. A morte de Remís Carla e das outras 3 mil mulheres que morrem na mão de seus parceiros todos os anos no Brasil provavelmente não são resultado de doenças mentais não diagnosticadas – ou estaríamos lidando com um caso único de país com população masculina profundamente perturbada – , elas são resultados de uma sociedade que tolera a violência e de homens que se sentem donos da vida e morte de suas parceiras. Não usemos doenças mentais como justificativa para crimes como o de Paulo César de Oliveira: além de falso e ofensivo com pessoas que tentam tocar suas vidas da melhor forma possível com algum tipo de sofrimento mental, isso também tira o foco do real problema que é a socialização de todos os homens dentro do patriarcado.
E sobre Remís e todas as outras que morreram e morrerão vítimas da violência machista, suas vidas não serão esquecidas. Suas dores serão convertidas numa luta mais apaixonada e seus rostos estão nas nossas memórias sempre que tememos pela nossa segurança numa rua deserta, numa festa ou dentro de nossas próprias casas. Essas mulheres continuam na luta mesmo ausentes, como um lembrete constante de que cada uma de nós pode ser a próxima.
“Se me matam, levantarei os braços do túmulo e serei mais forte” – Minerva Mirabal