in

O funcionalismo e a hipótese meritocrática

As Teorias da Modernização eram as principais perspectivas utilizadas na ciência política na década de 60 e 70. Elas tentam explicar o processo de transformação de sociedades tradicionais para aquelas consideradas modernas e se baseiam na idéia de que a democracia e a participação na política só acontecem no transcurso de uma modernização econômica.

Para os teóricos que defendem essa linha, o desenvolvimento das sociedades modernas e o próprio mercado tinham um papel essencial na melhoria da vida da população. Eles observavam que conforme a sociedade se modernizava, maior era a especialização e divisão do trabalho, logo, para suprir a demanda por trabalhadores aptos a desempenhar funções laborativas mais especializadas que surgiam a partir da era moderna, haveria um interesse em se ampliar o acesso à educação. O conhecimento seria cada vez mais valorizado e quanto mais amplo fosse este acesso, menor seria a influência da posição familiar do indivíduo que agora não precisaria mais seguir os passos do pai (pai patrão), mas sim se especializar para alçar a mobilidade social desejada. Neste raciocínio surgiu a “hipótese meritocrática” que tanto discutimos, sem nem sempre conhecer sua origem ou significado. A hipótese tem como princípio que conforme a educação fosse sendo ampliada ou até universalizada, as pessoas estariam em pé de igualdade para disputar uma competição justa por lugares cada vez mais “altos” na sociedade. Se o ponto de largada é o mesmo, a única coisa que nos faz ter sucesso ou fracassar socialmente seriam as nossas potencialidades, além do mais, nós não estaríamos mais presos às amarras que nos obrigavam a desempenhar as funções no mundo do trabalho herdados pela nossa família, o que mudaria radicalmente os processos de estratificação social.

A hipótese meritocrática foi desenvolvida pelo sociólogo funcionalista estadunidense PARSONS, que teria buscado fundamentação para ela na teoria da divisão do trabalho de DURKHEIM. Para Durkheim, a passagem das sociedades de solidariedade orgânica (caracterizadas como simples, com pouca divisão do trabalho) para sociedades de solidariedade mecânica (complexas, grande divisão do trabalho, funções interligadas funcionando como um grande organismo social) seria o motor para grandes transformações históricas. A força da modernização construiria uma nova ordem, baseada na unidade, na reciprocidade econômica e dependência uns dos outros, diminuindo as desigualdades uma vez que as tradições e as nossas origens não tivessem mais tanto peso. Para além de Durkhem, Parsons também usou o conceito de burocracia e status social de WEBER para fazer a sua análise. Faltava em Durkheim, que acreditava que a relação entre sujeitos e sociedade se dava a partir de um processo de coerção, o elemento que faria com que a hipótese meritocrática de que as competências dariam ao indivíduo mobilidade social funcionasse. Por isso, ele se apropria da análise de Weber sobre o papel subjetivo da ação (pessoas agem avaliando os fins de acordo com seus desejos, não é um fenômeno meramente externo) e de burocracia como meio de poder, com a burocratização do status social adquirido através de um sistema mundial que “ordena” os indivíduos mais qualificados. Esta apropriação de Parsons foi entendida como uma forma de aproximar a teoria weberiana da durkheimiana e foi duramente criticada.

As teorias da modernização carregam uma visão “otimista” em relação a universalização/democratização do acesso ao ensino, que além de necessária para as novas relações de trabalho que as sociedades complexas desenvolveram, também seriam o princípio de uma era de autonomia e mobilidade social. Entretanto, o tempo passou e pudemos observar que esta era nunca aconteceu. O mercado não conseguiu suprir a sua demanda por mão de obra qualificada ao mesmo tempo que diminui as desigualdades e as pessoas ainda não podem transitar para outras posições sociais simplesmente pelo poder da vontade. A hipótese meritocrática não foi verificada porque, na realidade, a mobilidade social continuou limitada por outras condicionantes que não o esforço e desejo dos indivíduos de “subir” na hierarquia das classes. Fazendo contraponto às Teorias da modernização que criaram a hipótese meritocrática, as Teorias da Reprodução argumentaram sobre porque essas teorias não poderiam funcionar e o porquê da ampliação da educação não ser suficiente para nos equalizar em oportunidades. Um dos argumentos está centrado no conceito de capital cultural de BOURDIEU, que defende que o capital simbólico (estilo de vida, hábitos de consumo), para além do capital financeiro, também define o lugar que um indivíduo ocupará no mercado. O ambiente escolar universalizado e a criação de sistemas de avaliação não fará com que as pessoas alcancem igualdade de oportunidades, uma vez que antes e fora da escola elas já estarão localizadas socialmente e que essa localização também delimita os rumos que ela pode tomar na vida. Como o sistema educacional seria definido pelas elites, o capital cultural das elites é a que seria transmitida neste ambiente impondo-se como cultura por excelência. Isso faria com que pessoas que já tivessem acesso ao capital cultural das elites antes e fora da escola se destacassem, uma vez que são estimulados a desenvolverem as potencialidades ali valorizadas. Também de acordo com outro autor das teorias da reprodução, COLLINS, a universalização do ensino não conseguiria diminuir as desigualdades sociais porque com as elites controlando o sistema educacional, também controlariam o mundo do trabalho, optariam por selecionar os alunos pertencentes às elites enquanto que aos demais relegariam as posições de menos prestígio. Este autor também faz uma releitura da racionalidade meritocrática de Weber no ponto em que, ao invés de uma racionalidade na produção definindo os lugares considerados de maior prestígio, as classes dominantes modificam o valor de determinadas titulações educacionais conforme lhes convém para atingir os postos mais altos. O sucesso do indivíduo não está necessariamente ligado a sua competência escolar, mas à aptidão para as potencialidades valorizadas, vagas disponíveis para a área de sua escolha no mercado e indicadores sociais que sinalizem pertencimento a este ou aquele grupo. Outro autor, BOWLES E GINTIS, acrescenta que, na verdade, o sistema educacional tem o papel mantenedor das desigualdades já que supervaloriza as instituições “do topo” que formam as elites, enquanto ensinam para as massas que elas devem aceitar as diferenças sociais estabelecidas. Ele analisa também a questão racial americana e diz que conforme os negros alcançassem uma certa paridade educacional com os brancos (elite), outros mecanismos seriam criados para que as condições desiguais se mantivessem como, por exemplo, a segregação deste grupo em guetos nos centros urbanos.

Um dos fatos interessantes que se alia a análise das teorias da reprodução de que universalizar o ensino não faria com que as desigualdades sociais fossem diminuídas foi um censo educacional realizado nos EUA na década de 70, chamado Relatório Coleman. O relatório chegou a conclusão após análise dos dados de que não seria a qualidade das escolas o definidor dos resultados entre os alunos e sim a diferença socioeconômica entre eles. Essa e outras pesquisas apontam para a refutação das teorias da modernização e consequentemente da hipótese meritocrática.

Apesar de opostas, ambas as teorias enxergam a preocupação com o tema educação como possibilidade de diminuir as desigualdades sociais. As duas concordam que o sistema educacional é importante para integração e igualdade, mas ao passo que uma o enxerga como uma forma de “ordenar” e moldar os indivíduos para o mercado moderno, sendo o elemento principal que diminuirá as desigualdades sociais, o outro vê o caráter seletivo e segregador deste sistema para repensar um modelo menos violento e que consiga, de fato, neutralizar as relações desiguais de força que ainda existem no ambiente educacional.

Facebook Comments Box

Written by el Coyote