in

Escondidas à vista de todos:As origens indígenas da democracia nas Américas.(Parte II)

Parte I

Por  David Graeber and David Wengrow , originalmente publicado em  Lapham’s Quarterly

Tradução Por Leticia Oliveira

Tais relatos não têm se saído bem nas mãos dos historiadores modernos. A maioria os rejeita como a projeção fantasiosa do autor de alguma cena de uma antiga ágora grega ou do senado romano, mas isto por si só requer um extraordinário esforço de imaginação, uma vez que o Concílio de Tlaxcala continuou a existir durante o período colonial. Seus procedimentos, e a facilidade que seus políticos tinham em levar um  debate fundamentado, são registrados nas Actas Tlaxcalan dos séculos XVI e XVII, outra fonte que os historiadores modernos tendem a ignorar, insistindo em dizer que os “índios espertos” simplesmente adotaram costumes democráticos europeus (embora estes mal existissem na Europa na época) para impressionar seus novos senhores (que eram, na verdade, resolutamente antidemocráticos e improváveis de se deixar encantar). Sugerir o contrário é estar aberto a acusações de romantismo ingênuo.

Um argumento muito mais convincente a se fazer é o de que as deliberações registradas em fontes espanholas são exatamente o que parecem ser: um vislumbre da logística indígena de governo urbano coletivo. Se de alguma forma eles se assemelham a debates em Tucídides ou Xenofonte, é porque existem de fato muitas maneiras de conduzir um debate político. Isso se confirma através de outra fonte. Em 1541 Frei Toribio de Benavente, chamado Motolinía (o “atormentado”) pelos habitantes locais, escreveu um relato sobre a constituição de Tlaxcala, onde explica algumas de suas pressupostas ideologias. A cidade, escreveu ele, era de fato uma república, governada por um conselho de funcionários eleitos (teuctli), responsável perante os cidadãos comuns. Não se sabe quantos membros havia no alto conselho de Tlaxcala ; fontes indicam entre cinqüenta a duzentos. Nem Motolinía explica como eles eram escolhidos ou quem era elegível (outras cidades de Puebla faziam a rotatividade das funções oficiais entre os representantes das alas urbanas, ou calpulli). Na discussão sobre meios de educação política e instrução de Tlaxcalteca, entretanto, seu relato ganha vida.

Longe de demonstrar carisma pessoal ou capacidade de superar rivais, aqueles que aspiravam a um papel no Conselho de Tlaxcala o faziam num espírito de autodepreciação – ou mesmo de desonra – e eram obrigados a se subordinar ao povo da cidade. Para garantir que não fosse apenas  aparência, todos eram submetido a provas, começando pela exposição obrigatória a insultos em público, que eram tidos como o prêmio apropriado para a ambição, e depois – com o ego em farrapos – um longo período de reclusão, onde o político em exercício sofria provações de jejum, privação do sono, sangria e um rigoroso regime de instrução moral. A iniciação terminava com uma “saída” do funcionário público recém constituído em meio a festas e comemorações. Claramente, a tomada de posse nesta democracia indígena exigia traços de personalidade muito diferentes daqueles considerados padrão na política eleitoral moderna.

Cortés pode ter aclamado Tlaxcala como uma utopia agrária e comercial, mas como explica Motolinía, quando seus cidadãos refletiam a respeito de seus próprios valores políticos, eles os consideravam como algo que literalmente veio do deserto. Como outros falantes de Nahuatl, incluindo os Astecas, os Tlaxcaltecas gostavam de afirmar que eles eram descendentes dos Chichimecas. Considerados os caçadores-coletores originais, os Chichimecas viviam asceticamente em desertos e florestas, morando em cabanas primitivas, alheios à vida em aldeias ou cidades, rejeitando o milho e a comida cozida, sem roupas ou religião organizada, e vivendo de provisões não cultivadas. As provações sofridas pelos aspirantes a conselheiros em Tlaxcala eram lembretes da necessidade de cultivar qualidades Chichimecas – embora estas fossem, em última análise, equilibradas pelas virtudes Toltecas de guerreiro urbano.

Os frades espanhóis sem dúvida viram nisso alegorias do Velho Mundo para uma virtude republicana, proveniente de uma mesma linhagem ancestral traçada a partir dos profetas bíblicos até Ibn Khaldun, incluindo aí seus princípios de rejeição ao mundano. As similaridades são tantas que pode se pensar que os cidadãos de Tlaxcala realmente se apresentaram aos espanhóis em termos que eles sabiam que seriam imediatamente reconhecidos e apreciados. Certamente, eles encenaram alguns espetáculos teatrais extraordinários para agradar a seus novos senhores, incluindo um desfile sobre as Cruzadas de 1539. A Conquista de Jerusalém teve como ponto alto o batismo em massa de (verdadeiros) pagãos, vestidos de mouros. Talvez os observadores espanhóis tenham aprendido com os Tlaxcalteca ou com os Astecas o significado do que é ter sido, um dia,  um “nobre selvagem” – mas nós divagamos.

Em meio a tantas comparações, o que podemos realmente concluir sobre a constituição política de Tlaxcala na época da conquista? Era realmente uma democracia urbana funcional? Em caso afirmativo, quantas outras poderiam ter existido nas Américas pré-colombianas? Ou estamos diante de uma miragem, uma evocação estratégica da “comunidade ideal”, oferecida a uma audiência receptiva de frades milenares? Teriam elementos da história e da mimese trabalhado em conjunto? Se tudo o que tivéssemos para analisar fossem fontes escritas, sempre haveria espaço para dúvidas. Mas os arqueólogos confirmam que no século XIV a cidade de Tlaxcala já era, de fato, baseada em uma organização totalmente diferente da de Tenochtitlán, por exemplo. Não há sinais de um palácio ou templo central e nenhuma quadra de jogo de bola (local primordial para a prática de rituais reais em outras cidades mesoamericanas). Em vez disso, o levantamento arqueológico revela uma paisagem citadina formada quase que inteiramente pelas residências confortáveis de seus cidadãos, construídas uniformemente de acordo com os mais altos padrões ao redor de mais de vinte praças distritais, todas erguidas em grandes terraços de terra. As maiores assembléias municipais estavam instaladas em um complexo cívico chamado Tizatlan, que se localizava fora da cidade, onde se entrava nos espaços públicos para reuniões através de amplos portais.

Tlaxcala foi única? Parece improvável. As cidades-estado democráticas raramente surgem completamente isoladas. A evidência arqueológica é importante aqui, porque nos dá alguma idéia de como seriam os vestígios de um regime democrático na Mesoamérica, mesmo com a ausência de fontes escritas. Geralmente, a identificação de uma capital real é mais simples. Os reis mesoamericanos, como a maioria dos outros reis, tendiam a fazer espetáculos de si mesmos; normalmente pode-se esperar encontrar não apenas palácios e templos piramidais, mas também quadras de jogo de bola, imagens de guerra e subjugação, estelas mostrando governantes dominando os cativos (que muitas vezes eram sacrificados após os jogos), rituais calendáricos celebrando os antepassados reais, e registros dos feitos dos reis vivos. Mas há também antigas cidades mesoamericanas onde nenhuma dessas coisas está presente, ou pelo menos onde elas estão ausentes por muitos séculos.

A mais antiga e grandiosa é  Teotihuacán, que teve seu apogeu entre 100 e 600. Com cerca de cem mil habitantes, tornou-se a maior cidade das Américas, e uma das maiores do mundo naquela época. Em seus primeiros séculos, a cidade se desenvolveu como seria de se esperar de um centro real em desenvolvimento. Grandes pirâmides gêmeas foram erguidas, junto com o Templo da Serpente Emplumada, cada grande projeto de construção santificado por sacrifícios humanos cuja evidência é recuperada de suas fundações. Então, por volta  de 300 algo mudou. O templo foi arruinado e incendiado, os sacrifícios humanos findaram e a construção passou a se concentrar em algumas centenas de apartamentos espaçosos, construídos em pedra – um meio-termo entre casas sociais e pequenos palácios – todos dispostos em um sistema de grade, construídos com um desenho comum. A partir de então, não há mais indícios de autoridade central, nem quaisquer sinais ostensivos de desigualdade, dentro da cidade.

Seriam as ruínas de Teotihuacán testemunho de uma revolução social prematura? A cidade foi administrada democraticamente em suas fases posteriores? Não podemos dizer com certeza, mas o que podemos dizer é que o contexto para tais debates está mudando. Além de exemplos posteriores nas Américas, a pesquisa contemporânea na Eurásia está começando a mostrar que, muito antes de Atenas do século V, cidades igualitárias e formas participativas de governo eram surpreendentemente comuns – as primeiras culturas urbanas da Mesopotâmia, Ucrânia e do Vale do Indo, por exemplo, e também outros casos de revolução social, como o da cidade chinesa de Taosi, por volta de 2000 a.C. Novamente, os historiadores do futuro provavelmente verão as origens dos Estados-nação modernos de maneira muito diferente da que vemos hoje. Da mesma forma, parece, eles precisarão abandonar essa visão dos Mármores de  Elgin do passado e abrir espaço para histórias inteiramente novas sobre democracia.

Facebook Comments Box

Written by el Coyote