Eu tentei não me envolver na polêmica da saidinha da Suzane Von Richtofen, mas o estímulo da companheira de lutas e de vida, Thais, me estimulou a tecer mais esta conversa.
Bom, este não é um texto tipicamente jurídico. Se você quisesse um texto técnico sobre saídas temporárias e progressão de regime, você encontraria aos montes. Este é um texto para conversar com meus amigos advogados, comas vítimas de crimes, com os familiares de presos, com meu amigo engenheiro que não gosta de estudar Direito, e nem precisa, porque nem todo mundo tem que gostar da mesma coisa. Então, eu não vou aceitar artigos do Código Penal por aqui, mas pode ser que eu precise recorrer a algumas teorias jurídicas, e prometo fazer da forma mais simples que eu conseguir, combinado?
Agora, senta que lá vem história.
Bom, vamos começar entendendo o que diabos é um sistema jurídico. O sistema jurídico, e dentro dele o sistema penal, que é onde vamos nos focar, é um conjunto de normas que nós enquanto sociedade temos um relativo acordo que são importantes para que a gente possa, como o nome sugere, viver em sociedade. Um agrupamento de humanos se torna uma sociedade por dois aspectos, um, por ser capaz de compartilhar linguagens possíveis de serem mais ou menos compreendidas pela quase totalidade do grupo, e criarem um conjunto de condutas prescritas que devem ser seguidas por todos. Linguagem e sistema jurídico são os dois elementos que nos fazem ser uma sociedade.
Vários téoricos tentaram dar nomes a isso, ou explicar o que seria essa espécie de combinado. O mais conhecido, é o Rousseau e seu pacto social. Não precisamos entrar nessas minúncias, porque a teoria desses autores são muito complexas pra finalidade deste texto, e tem divergências entre elas. Vamos então entender que existe isso que se chama ordenamento jurídico, e ele prescreve condutas, ou seja, ele te dá uma receita do que fazer se você quiser casar ou comprar um imóvel.
No caso penal, a gente está falando de crimes, ou seja, de abalos e rupturas no nosso sistema. De condutas de um ou poucos indivíduos que nos colocam enquanto sociedade em fragilidade. Mas, o que acontece, o Direito e o Estado não conseguem proibir condutas criminosas, nem que queiram. Tanto é que nosso Código Penal não diz em momento algum coisas como “é proibido matar”. Não tem jeito, o Estado não consegue ficar atrás de cada um de nós, e quando estivermos prestes a dar uma paulada na cabeça de alguém, ou puxar o gatilho, o Estado vir e nos impedir.
Então, se o Estado não proíbe os crimes o que ele faz? Ele desencoraja a prática de crimes por meio da previsão de sanções, ou, pra te ser bem sincera, punições. Quando você abrir o Código Penal, você vai ler que o que está escrito é algo como, caso tal conduta seja cometida, o Estado irá impôr determinada pena, em geral, a restrição da liberdade.
Então tá. A gente já entendeu que no nosso acordo como sociedade a gente entende que o Estado deve punir as condutas que não queremos que aconteça. Aí vem a segunda parte. A gente também acordou, por meio do nosso sistema jurídico, que a gente não pune as pessoas por vingança. A gente decidiu que a pena só existe porque tem uma função social, ou seja o Estado gasta e muito do nosso dinheiro coletivo para investigar, julgar e executar penas, elas têm que servir para algo, certo?
Esse algo é a ressocialização. Pelo menos em teoria, na prática a gente sabe que cadeia é tortura e escola do crime. Mas, vamos continuar no plano ideal. A pena só existe porque acreditamos que presos podem e devem ser ressocializado. Ou seja, eles irão voltar para a sociedade, esperamos nós, como cidadãos melhores dispostos a não bagunçar nossos acordos coletivos.
Por isso nós não temos no Brasil, pena de morte para civis, porque a gente acha que o Estado não pode ter poder sobre quem vive ou não, mesmo que estas pessoas tenham, sei lá, matado outras pessoas. A gente entende que todo cidadão, mesmo que tenha cometido crimes horrendos, são cidadãos, merecem a chance de serem ressocializados e voltarem à sociedade.
Também entendemos que não pode ter pena cruel, não pode estender a pena da pessoa do condenado, tem que ter devido processo legal, presunção de inocência, e direito ao contraditório e ampla defesa. Tudo isso existe para superarmos a barbárie, e mais que isso, para proteger a todos nós de excessos do Estado.
Na prática, as penas são sim cruéis. Basta uma reportagem sobre como é uma prisão que a gente sabe que superlotação, agente prisional despreparado e violento, comida azeda são cruéis por demais. A gente sabe que o Estado brasileiro executa sumariamente vários civis. A gente sabe que revista vexatória é estender a pena do condenado para seus familiares. A gente sabe que pobres não tem ampla defesa, e que preto não tem presunção de inocência. Mas isso é prática, há distância entre teoria e ato.
Eu fiz este preâmbulo todo, para gente chegar na Suzane. Bom, se a gente entende que os presos são ressocializados e deverão voltar à sociedade, a gente tem que garantir uma estrutura para isso. Não é factível achar que uma pessoa vai ficar quinze anos presa, sair um belo dia e desfrutar os ventos da liberdade e logo arrumar casa, amigos, emprego, ou sei lá, entender o que é um smartphone?
Para garantirmos a volta dos presos à sociedade alguns países, como o Brasil tem a ideia da progressão de pena. Ou seja, quanto mais perto o condenado está do fim de sua pena, ele vai sendo aos poucos inseridos novamente à sociedade. Passando então pelo regime semi-aberto, que garante que ele passe algumas horas por dia fora da prisão, depois o aberto, e aí, um dia finda sua pena, ele cumpre sua obrigação com o Estado e sociedade e vai viver sua vida — esperamos nós, que sem reincidir no mundo do crime.
É uma espécie de devolução gradual do preso ao convívio social para que ele possa ir restabelecendo no mundo exterior os laços necessários para uma vida razoável, e que inclusive, é uma condição para que ele não precise recorrer ao cometimento de crimes para sobreviver pós-cadeia.
Dentre os instrumentos previstos nesse processo de ressocialização está a saída temporária, famosa saidinha. Presos que já tem direito a progressão de regime, ou seja já cumpriram um tempo significativo da pena, e que cumprem outros requisitos, passam a ter o direito em alguns dias do ano, ficarem um período maior fora da cadeia. Desde que se comprometam a se abster de diversas condutas.
Em geral estas saidinhas acontecem em datas como Dia das Mães, Natal e Dia dos Pais. Não precisava ser. Mas existe uma razão lógica para isso. A principal estrutura de apoio de uma pessoa é a família, a família é o local da nossa socialização primeira. Por isso, o sistema de execução penal escolhe estas datas para as saidinhas, porque tem uma chance maior de que o preso vá se engajar em atividades familiares, já que culturalmente são os dias que nós brasileiros vamos visitar a vovó, almoçar com os parentes e escutar piadas do pavê e pacumê. Além disso, lembra que ser família não é crime? Então, pensa que você é a mamãe de uma pessoa que está presa, não te daria um certo quentinho no coração poder abraçar seu filho na sua própria casa no Dia das Mães? A gente fala que se preocupa tanto com mães, mas mãe de quem cometeu crime também é mãe. Também sofre. Por isso, via de regra, as saidinhas são nessas datas. Não há um calendário oficial.
Eu sei, nessa hora você está pensando que a Von Richtofen não tem mãe, porque ela mesma mandou matar a mãe, logo a mãe dela não está esperando ela de braços abertos pro almoço de família. Eu até imagino que pro resto da família da Suzane, quem sabe até pro seu irmão (não faço ideia como é a relação dos dois) pode ser bem doloroso. Ou pra mãe de Isabela Nardoni, que hoje não pode estar com a filha, e sabe que a madrasta que ajudou a tirar a vida da menina está fora da cadeia. Eu sei, eu sou uma pessoa sensível, essa dor me comove.
Mas, aí a gente volta de novo pro Estado. Lembra que o Estado tem que ressocializar os presos, para isso ele tem alguns instrumentos que é importante para o sucesso dessa ressocialização, e que além disso as saidinhas são direito destes presos? Pois bem, este mesmo Estado lida com milhares e milhares de presos no Brasil todo. É burocraticamente impossível diferenciar estas datas conforme o crime que foi cometido ou o clamor público. Sim, a Suzane, a Jatobá e em breve o Nardoni, não apenas têm direito às saídas temporárias, como o nosso acordo social prevê que estas saídas são um processo necessário para garantir que eles restabeleçam as próprias vidas antes de findada a pena.
Então, não, nenhum juiz está liberando a Suzane, ou outro preso, porque estão com dó deles. Ou porque ignoram que estes crimes foram bárbaros. Ou porque desconhecem que a Suzane não têm mães. Estes juízes liberam porque existe previsão legal, e seguirmos as previsões legais, principalmente as que garantem nossos direitos perante os abusos do Estado, é o mínimo para garantirmos a integridade do ordenamento jurídico, mesmo sendo bem falho. E mais, garantirmos o direito dos presos de acessarem o que é previsto na Lei de Execução Penal é o outro lado da moeda para que nós possamos cobrar que a Lei seja cumprida.
A saidinha beneficia mais a mim, a você, e a toda a sociedade, mesmo que nós nunca tenhamos nem pensado em matar nossas mães por dois motivos:
1- me asseguram que ainda há um mínimo de garantia penal, não me deixando à mercê de totalitarismos estatais
2- permitem que as redes de apoio das pessoas condenadas se fortaleçam enquanto eles ainda estão sob a custódia do Estado, para que quando eles saiam, eles dependam menos das tutelas deste mesmo Estado, gerando gastos, ou, na pior das hipóteses, encontrem novamente no crime seu único refúgio.
Espero não precisarmos dessa conversa de novo em agosto, quando o Nardoni fizer sua primeira saidinha.
Valeu pra quem leu até aqui!