in ,

Pensando a liberdade: Atingindo o impossível coletivamente

More than 15,000 people march in silence in Belgrade, marking the 10th anniversary of murder of Prime Minister Zoran Djindjic, the first democratically elected Prime Minister in post-communist Serbia. Djindjic was shot and killed by a single sniper in broad daylight at the doorstep of a Serbian government building. (Andrej Isakovic/Getty Images)

Entrevistado Michael Neocosmos, originalmente publicado em Roar Magazine

Essa entrevista com Michael Neocosmos faz parte do último relatório da Transnational Institute sobre o Estado de Poder, que examina os movimentos sociais atuais, seu potencial para construir contrapoder, e as melhores formas de resistirmos a injustiça, bem como podemos preparar as fundações para uma transformação a longo prazo.

Como você define contra-poder? Como isso se relaciona com as políticas emancipatórias?

 

Eu não acho que nós deveríamos tornar o poder o ponto de partida para se ter a emancipação em mente, particularmente se for uma noção binária de poder. Não importa se você está falando sobre poder ou contra-poder, você sempre vai começar de uma noção dos interesses e identidades dos povos, ao invés de uma noção de emancipação universal. E você termina falando sobre Estados e como nos relacionamos com eles ao invés de definir uma universalidade humana em nossos próprios termos. Claro, o poder está sempre envolvido nos locais e arenas de atividade política.

Minha preocupação, no entanto, é que se usarmos categorias de poder, mesmo que a usemos para pensar em uma maneira diferente de tratar o poder, terminamos usando palavras e pensando através de categorias que não nos ajudam, pois são as categorias através das quais o próprio Estado pensa. Dado que um Estado igualitário é uma antítese, uma clara impossibilidade, qualquer teoria de igualdade universal deve tentar pensar fora das categorias hegemônicas (ou seja, Estados).

Nosso ponto de partida deve ser o fato de que pessoas pensam, e que essa imaginação coletiva possa propor um futuro emancipatório. Usando dos trabalhos de Alain Badiou, Sylvain Lazarus, Jackes Rancière e outros, se partirmos do princípio que todo mundo consegue pensar, o que queremos dizer? Nós não podemos simplesmente presumir que os pensamentos das pessoas são simples reflexos de suas condições sociais.

Nós não podemos presumir, por exemplo, que trabalhadores estão interessados somente em condições de trabalho ou valor do pagamento, ou que mulheres se interessam somente com famílias, lares ou relações de gênero. No entanto esse é o foco de pensamento sobrepujante dentro das ciências sociais, tanto da direita quanto da esquerda. Presume-se que as pessoas não pensem fora, ou além, dos limites estruturados pela sua região ou classe social.

O que é mais interessante é que dada algumas condições de dificuldade, as pessoas algumas vezes pensam coletivamente para além de seus interesses, além de suas regiões. Elas pensam e agem com um certo tipo de igualdade, um certo tipo de universalidade. É nisso que consistem as idéias políticas emancipatórias, é ali que está localizado – do contrário, política não passa da reação a interesses e identidades. Hoje, é fundamental que pensemos para além das identidades, do contrário terminamos matando uns aos outros. Guerras, particularmente nucleares, são uma distinta possibilidade hoje.

 

Como é a política emancipatória?

 

Acho que esse tipo de política sempre é fundamentada em alguma idéia de humanidade universal, de justiça, de dignidade – Esses são os requerimentos para a emancipação humana. As pessoas não raciocinam necessariamente nestes termos, mas têm a capacidade de fazê-lo, e se não reconhecermos esse fato, nós não vamos nem ver quando acontecer. Nós não vamos nem ver porque nós partimos do pressuposto que os pensamentos das outras pessoas estão em conformidade com as nossas categorias teóricas pré-existentes, se não, então simplesmente concluímos que a pessoa está errada. Precisamos para de raciocinar dentro destes limites.

O “Abahlali baseMjondolo”, um movimento de moradores de favelas, da cidade de Durban na África do Sul, expressa isso muito bem quando dizem: “uma pessoa é uma pessoa, não importa de onde venha.” Esse é o ideal no qual baseiam seu movimento na luta contra a xenofobia na África do Sul. Os ideais emancipatórios amplificam o que as pessoas têm em comum, ao invés daquilo que nos diferencia. Eles abraçam a justiça universal, onde todos devem ser tratados da mesma maneira, tratados com dignidade e igualdade. Isso inclui chamar a atenção para as hierarquias sociais, fundamentadas na divisão social do trabalho. Não existe razão para que eu – um professor de universidade – receba tão mais que um gari de rua.

isso é muito diferente do raciocínio Estatal – ainda que o Estado Liberal ocidental contemple uma idéia de um “Homem” universal, sabemos que é uma idéia falsa porque se aplica a somente algumas pessoas, enquanto a maioria dos homens, mulheres e crianças, principalmente os com a pele mais escura, são excluídos, colonizados e oprimidos. O colonialismo, que está subordinado a extermínios e genocídios, foi fundado nesse universalismo falho, isso é bem sabido.

 

 

 

Como se manifesta a política emancipatória?

 

Deve-se entender que a idéia de humanidade universal raramente é colocada no centro da política. Isso só acontece de vez em quando, não é uma característica universal das rebeliões populares, mas sempre há uma certa tendência para a igualdade, quando as pessoas decidem por si mesmas a se rebelar coletivamente contra suas sistemáticas exclusões do sistema social, o que é hoje o capitalismo liberal sem restrições. Seja durante a luta dos escravos Africanos, onde hoje é o Haiti, seja durante as lutas de independência nacional em muitos países Africanos dos anos 50 em diante, ou seja no centro de lutas mais recentes, como na África do Sul nos anos 80 e, ainda mais recentemente, conseguimos observar elementos do universalismo, de idéias de universalidade combinadas de diferentes formas com idéias particularistas que defendem interesses.

No Haiti, Toussant L`Ouverture – talvez a figura mais conhecida associada àquela revolução – não lutou para substituir o racismo branco pela dominação negra. A idéia era lutar contra a propriedade de pessoas como um todo, pois é uma prática desumana. Quando Frantz Fanon fala sobre o conteúdo emancipatório da “consciência nacional”, durante a luta de liberação da Nigéria nos anos 50, ele não está falando de nacionalismo, ele está salientando o fato que não existe liberdade para a humanidade se alguns povos são colonizados e subjugados por outros. É simples assim. Quando o povo da África do Sul lutou pelo “poder popular” na década de 80, eles não excluíram os estrangeiros como acontece com frequência hoje.

A noção de exclusão política faz parte da fundação do capitalismo, como Marx bem apontou. Mesmo que isso seja claramente verdade, a política também envolve a criação ou formação de uma comunidade política, uma unidade dos politicamente excluídos, que, como consequência da necessidade, envolve alguma noção de trabalho em equipe sob condições onde todos, sem exceção, têm o direito de falar e pensar. Como resultado, eles passam pela idéia de universalidade. De qualquer forma, sem atingirmos uma unidade, o inimigo jamais será devidamente combatido!

 

O que podemos aprender com a África?

 

Eu prefiro falar dos Africanos, ao invés de falar da África. “África” assim como “Europa”, está implicitamente identificada pelos seus representantes, com poder. Evidentemente os Africanos devem ser considerados seres humanos como todo mundo, capazes de pensar e, como Amílcar Cabral declarou, pessoas capazes de fazer história. Uma das mais importantes revoluções do séc XVIII, a revolução Haitiana (que é ofuscada nos livros de história pelas revoluções Francesa e Americana) foi liderada por Africanos (pessoas nascidas na África) e foi mais longe do que os franceses na sua definição de humano, porque eles reconheceram, que ninguém deveria ser propriedade de ninguém, como verdade universal. Os revolucionários Franceses vacilaram neste assunto, enquanto os “pais fundadores” dos E.U.A. estavam diretamente envolvidos com a escravidão.

É imperativo que quebremos a nossa visão dos Africanos como vítimas, ao invés de agentes da história. Durante o período colonial, Africanos como Lumumba eram definitivamente vistos como agentes da história, mas ao final dos anos 70, passaram a ser vistos com mais frequência como vítimas. A África foi retratada como um continente de fome, crises, pobreza e subdesenvolvimento onde era necessária a intervenção salvadora de Estados e ONGs. O que poderia ser mais neocolonialista do que essa perspectiva?

Você pode ver isso refletido na África do Sul com a Comissão da Reconciliação e Verdade. Enquanto foi muito importante para a reconciliação das elites que se opunham entre si, acabou por transformar aqueles que estavam lutando por liberdade em vítimas e suplicantes do Estado. Esse ponto de vista também está presente na esquerda, onde é o suficiente pensar nos problemas do continente como consequências da colonização da África. acaba-se por reforçar a narrativa.

 

Como, e por quem, a política emancipatória é desenvolvida?

 

Se partirmos da ideia de que todo mundo é capaz de pensar, nós precisamos ouvir o que as pessoas estão dizendo quando se organizam coletivamente. Nós precisamos ouvir o que as pessoas estão dizendo, como eles estão tomando decisões, o que está acontecendo, se algumas pessoas estão sendo excluídas? E por aí vai. As pessoas podem não usar o mesmo linguajar que usamos. Eles podem não usar as mesmas palavras como classe e etnia, por exemplo, ou mesmo termos como neoliberalismo. Aqui na África do Sul, por exemplo, o conceito de neoliberalismo foi alardeado por todo o lugar (assim como o termo “globalização” foi nos anos 90), mas para a maioria das pessoas, o principal problema não é necessariamente a economia, mas sim a relação do povo com o poder e o Estado (a polícia, criminosos e políticos locais, caciques e por aí vai).

Se o que as pessoas estão dizendo, é que querem os nossos interesses reconhecidos da mesma maneira que os outros, não pode existir conteúdo emancipatório. No entanto, se eles estão reclamando que seus interesses sejam reconhecidos porque todos têm de ser tratados da mesma maneira, que todos os seres humanos sejam tratados da mesma forma, então eles estão falando de algo diferente, pois estas são expressões para possíveis sementes para um raciocínio alternativo de emancipação.

Na política popular, existe uma distinção entre idéias que refletem os interesses e lugar social (queremos ser incluídos, queremos casas, trabalhos) e idéias de universalidade e humanidade. Ambas surgem combinadas de contextos particulares de lutas de massas e existem em dialética. Você pode ver essas contradições na revolução Haitiana, por exemplo. Está claro que a realidade da opressão branca levou rebeldes a matarem brancos, mas também está claro que Toussaint L’Ouverture não pensava simplesmente como um homem negro, mas como o portador de um pensamento de iluminismo universal, e alegremente alistava soldados poloneses para lutar contra os donos de escravos e os Franceses.

 

Fanon também enfatizou o envolvimento de brancos na revolução Nigeriana. A luta pela liberdade nunca é uma uma estreita luta por identidade. Pode acabar assim, claro, mas isso quer dizer que o conteúdo emancipatório da luta foi perdido e políticas de estado identitárias se tornaram dominantes.

 

A sociedade civil e movimentos sociais podem desenvolver políticas emancipatórias?

 

É importante nos lembrarmos de quando a idéia de sociedade civil se tornou popular. Foram nos anos 80, como consequência dos esforços de democratização popular na Polônia e África do Sul. Era baseado em uma idéia de política neoliberal que pregava que a sociedade civil era domínio da liberdade, onde interesses diferentes podem se organizar uns aos outros. A sociedade civil é tratada como um domínio de luta entre interesses. Eu não acho que por si só essa idéia pode ser uma fonte de políticas emancipatórias, porque interesses (por definição), não podem ser uma fonte de emancipação. As políticas emancipatórias, como eu frisei, têm de se distanciar das idéias de interesses e identidades.

No meu livro, Thinking Freedom in Africa (Pensando Liberdade na África, Wits University Press, 2016), eu falo sobre a “sociedade civil” e a “sociedade não civil”, também sobre a “sociedade tradicional”, como domínios das políticas de Estado. Os Estados na África, regem a sociedade civil, dando às pessoas o direito de ter direitos. Para simplificar, na África do Sul, por exemplo, se um policial vem à sua porta para revistar sua casa, eles devem ter um mandado de busca. Na sociedade civil você tem o direito à privacidade e a liberdade de prisões aleatórias. Mas na realidade da maioria das pessoas a polícia chuta a porta abaixo, porque essas pessoas, os pobres, a maioria dos negros, os desempregados, não têm direito a ter direitos. Eles não são regidos de dentro da sociedade civil, mas de dentro da sociedade não civil. Em suas comunidades, o Estado e a polícia podem agir mais amplamente, de maneira impune, contra seus direitos.

No sul do globo, como Partha Chatterjee notou, existe uma diferença entre ter direitos (rights) e a habilidade de desfrutar desses direitos (entitlement). Direitos são um fenômeno muito classe média, então, a sociedade civil acaba sendo um domínio da classe média, onde o Estado rege através do direito a ter direitos, enquanto a maioria é controlada pelo Estado dentro de um domínio da sociedade não civil, onde o Estado atua frequentemente (mas nem sempre) através do uso de violência. E na sociedade não civil as pessoas respondem com violência também. Isso é o que gera a violência xenofóbica, pois a violência é considerada como uma maneira legítima de se resolver controvérsias e problemas políticos. Pessoas governadas pela violência neocolonial respondem violentamente.

Assim sendo, se nós falamos de sociedade civil, estamos falando da visão dos Estados democráticos do que eles consideram se tratar a democracia, sobre políticas de Estado para os poderosos, profissionais e por aí vai. O Estado só reconhece organizações da sociedade civil, incluindo movimentos sociais, se eles se preocuparem em defender interesses, não em defender a humanidade universal. Pois o Estado vê a si mesmo como o detentor do monopólio da idéia de universal. Estados não podem tolerar organizações que falam de universalidade porque isso contradiz o monopólio do Estado. Os Estados vão enfatizar que os sindicatos representam os trabalhadores, organizações de mulheres representam as mulheres, e por aí vai, no intuito de dividir as pessoas e tirar a atenção delas dos sistemas políticos de dominação, como o capitalismo liberal.

A sociedade civil é frequentemente vista como sendo composta por ONGs, que estão ostensivamente preocupadas com o empoderamento das pessoas, mas estão fazendo precisamente o oposto. Elas são dirigidas por profissionais que vêm a si mesmos como porta-voz, como representantes dos desempoderados. Curiosamente, na África do Sul, nos anos 80 as pessoas empoderaram a si mesmas sem nenhuma ajuda, muito antes da chegada das ONGs. Depois dos anos 90, as ONGs não atuavam mais como apoiadores dos movimentos populares organizados independentemente, eles vieram com suas próprias agendas de empoderamento. Programas de empoderamento na verdade são programas de desempoderamento.

Até mesmo movimentos sociais, que são universalmente mais abraçados pela esquerda, podem ser problemáticos, precisamente por serem sociais, em outras palavras, são vistos como restritos a interesses e identidades particulares. Então, você tem um movimento de pessoas indígenas, mas estas organizações estão pensando para além das suas identidades/ interesses sociais? E se eles estão pensando mais universalmente, então, estritamente falando, não são mais um movimento “social”, mas ao invés disso estão no processo de se tornarem um movimento de massa, ou um movimento popular.

Se você mantiver um nível de pensamento em termos de movimentos “sociais”, então geralmente se chega à conclusão de que é necessário um partido político para unir esses grupos de movimentos sociais. Isso deveria ser um “nível mais alto” mas acaba por despolitizar os movimentos em favor de seus “representantes” nos partidos políticos. Os casos recentes da Bolívia, Grécia e Espanha vêm particularmente a mente. Nós precisamos pensar além disso. Esses termos, claro, representam algo real. Os movimentos sociais estão aqui, mas o que é mais importante, é o grau com o qual eles pensam as questões de universalidade, e superam em seus pensamentos as idéias de identidades, interesses, partidos e Estados.

 

E quanto às classes?

 

Classes organizadas popularmente, tal qual os sindicatos dos trabalhadores, também representam seus próprios interesses. O que Marx argumentava que faria um futuro igualitário possível, era que através de suas próprias organizações, o proletariado poderia representar os interesses de toda a humanidade, dos povos como um todo. A idéia era de que a classe trabalhadora era o agente da história e agiria de acordo com os interesses de toda a humanidade

Hoje precisamos pensar diferente, porque não existe uma certa classe social que salvará a humanidade das barbáries e guerras que são inerentes ao capitalismo. Claro, pessoas se organizam em classes e são localizadas em classes, mas certamente nem sempre se comportam como uma classe. É uma velha discussão nas ciências sociais, de que é necessária uma política específica para, arrebanhar os trabalhadores juntos politicamente e transformá-los em uma classe. A burguesia se une politicamente ao redor do seu controle do Estado, mas as pessoas trabalhadoras não podem fazer o mesmo por razões já citadas.

Na verdade, a classe trabalhadora não conseguiu manter uma existência política em lugar algum, desde o colapso dos partidos comunistas, que tentaram criar a classe trabalhadora como um agente político. Os trabalhadores ainda existem, mas estão muito divididos, e muitas pessoas não estão nem trabalhando ou, somente existem, em condições precárias, dando origem ao termo “precariado”. Então, o que os unifica? Para Marx, a unidade era alcançada ao se trabalhar juntos na produção, através da disciplina e aprendendo a capacidade de poder da ação e organizações coletivas. Mas se não existem lugares para se trabalhar juntos, onde está o potencial político para uma classe trabalhadora unificada? A política tem de ser criada na, e através da prática. Nós não podemos presumir que só porque os trabalhadores estão sendo esmagados, eles irão se levantar, gritando por uma liberdade universal da opressão.

 

Você escreve em seu livro sobre como as suas experiências nos movimentos na África do Sul guiaram seus pensamentos.

 

Eu venho de, e meus pensamentos estão firmemente enraizados dentro da tradição Marxista. Eu estava envolvido em apoios à luta clandestina do ANC (Congresso Nacional Africano) contra o apartheid. Nos anos 80, a África do Sul experienciou um movimento popular de massa, na tentativa de habilitar as pessoas a tomar algum controle sobre suas vidas. Durante esse período, mais ou menos de 84 a 86, a política era difícil de uma maneira particular. Não era por causa dos partidos políticos, porque todos os partidos populares foram banidos; esses movimentos foram muito espontâneos e tomaram para si, ou tentaram transformar muitas funções estatais nas áreas urbanas: transporte, campanhas de limpeza, educação, justiça popular, autodefesa, e por aí vai.

Estes não devem ser idealizados, pois excessos violentos ocorreram, mas ao mesmo tempo as pessoas adquiriram a capacidade de controlar as suas vidas coletivamente, e vigorosos debates abertos puderam ocorrer livres do controle do Estado. A inventividade popular foi habilitada, e o crime foi virtualmente banido dos distritos. Isso ficou conhecido como o movimento de “poder para o povo” – termo originário nas Filipinas e nas lutas contra o regime de Marcos.

De 87 em diante, no entanto, o Estado prendeu muitos militantes ativistas e removeu das lideranças qualquer habilidade de se organizar. Como resultado, as políticas nacionais se tornaram gradualmente mais coercitivas e menos democraticamente fundamentadas. O ANC não tinha qualquer presença organizacional, mesmo que seu prestígio fosse enorme e a sua idéia de nacionalismo fosse a dominante. Era unicamente uma organização no exílio, organizada hierarquicamente como um partido político e pensamento em termos militares. Se envolveram em várias iniciativas diplomáticas e na organização de uma guerrilha rural extremamente ineficiente.

No final dos anos 80, várias organizações populares começaram com frequência a visitar o quartel general do ANC, na capital da Zâmbia, Lusaka. então, gradualmente, ao invés de se auto empoderarem e se auto organizarem sob suas próprias formas de tomada de decisão, houve uma mudança para se ouvir as instruções do ANC em exílio. Em outras palavras, houve uma mudança distinta de política feita de baixo para cima, para feita de cima para baixo, de política popular para política de Estado. Isso aconteceu ao mesmo tempo que as chegadas das ONGs e organizações de ajuda internacional, que encorajaram ainda mais esse processo. As pessoas começaram a pensar política em termos de poder: como preencher cargos, como ter o apoio da maioria, como dominar os comitês e eventualmente o governo.

Os processos de tomada de decisão democráticos, frequentemente usam um sistema de delegados, pelo qual pessoas eram delegadas para representar organizações e depois voltavam para se reportar; esse sistema era particularmente comum nos sindicatos dos trabalhadores. Esse sistema gradualmente caiu por terra, uma vez que “voltar para se reportar” começou a cair em desuso e delegados foram substituídos por representantes. Isso resultou em um processo de despolitização, representado no seu pico por Nelson Mandela, que se direcionava aos protestantes com palavras como: “por favor, tenham paciência, dê-nos tempo para agir em seus nomes.” Esse tipo de política teve o efeito de sistematicamente desmobilizar as pessoas, e levou os políticos a acreditar que eles representavam o povo, falando por eles e substituindo o que as pessoas estavam falando pelas suas próprias idéias. Como o Abahlali baseMjondolo, o movimento de moradores de favelas de Durban, eventualmente aprendeu a dizer, “Não fale por nós. Fale conosco”. Essa idéia deve estar no centro de todas as relações entre movimentos populares e aqueles no poder.

O processo que a África do Sul passou, até onde estamos hoje, não pode ser explicado como nada, a não ser como uma traição. Eis um simples relato descritivo do que aconteceu; isso não é uma explicação. No meu trabalho, eu queria entender como podemos construir e manter uma política que seja democrática, popular e que apele a todos. O trabalho de teóricos Franceses, tal qual Alain Badiou e Jacques Rancière, por exemplo, tenta pensar a política em seus próprios termos, ao invés de reduzi-la à sociedade, à economia, ao desenvolvimento histórico ou a qualquer outra coisa. Através do uso de seus conhecimentos teóricos, e através dos meus estudos dos movimentos Africanos, isso levou às idéias no livro Pensando Liberdade na África.

 

Conte-nos sobre as lutas emancipatórias que te inspiraram e de quais devemos aprender.

 

Bom, uma que eu já havia mencionado é o Abahlali baseMjondolo. Esse movimento surgiu em 2005 como uma organização de moradores de favelas para proteger as pessoas pobres dos despejos em Durban, lutando contra o governo municipal e o Estado local para poderem permanecer no que acabou se tornando um terreno imobiliário de primeira. Eles tinham aspectos da lei do seu lado – que os impedia de serem compulsoriamente removidos – e eles usaram isso de maneira muito eficiente. Mas eles também foram além da luta por acesso à moradia, e se envolveram em lutas contra a xenofobia, organizando solidariedade com os refugiados do Congo, por exemplo. Talvez por serem uma comunidade multicultural, eles entendam os problemas com as políticas étnicas/ de identidade, que na África do Sul, é frequentemente representada por instituições tais como a chieftaincy (literalmente “chefia”, uma forma comum de autoridade dentro de comunidades negras Africanas), que também está estabelecida em áreas urbanas e periurbanas.

Tendo que lutar contra a divisão étnico/ política, eles tiveram que desenvolver suas próprias idéias, únicas, sobre universalidade, se baseando nas tradições populares Africanas. Eles também são únicos na maneira como são estruturados. Eles não têm ramificações, no sentido típico, que respondem a uma organização central. Até agora eles foram capazes de aguentar as mais severas formas de repressão, incluindo assassinato e matanças. Cada ramificação age independentemente e aceitam as regras gerais do Abahlali, tais como independência política, a luta para defender as terras ocupadas, acesso comum a recursos e por aí vai.

A maioria das ramificações estão na área de Durban, mas novas ramificações começam a surgir em diferentes partes do país. A organização central, enquanto ela existir, está lá para auxiliar nas lutas de cada ramificação. Eles têm um website muito sofisticado que reflete isso. Depois de um breve hiato, em 2012, eles provaram consistentemente que os partidos não representam os interesses dos pobres, usando-os somente como fontes de votos. Eles têm mantido fortemente a sua independência de acadêmicos, ONGs e da sociedade civil de maneira geral. Foram razoavelmente bem sucedidos em manter a sua independência e contam agora com mais ou menos 30.000 membros.

Curiosamente, eu fiquei chocado pela semelhança da declaração do Abahlali contra a violência xenofóbica na África do Sul, com formulações históricas Africanas sobre humanidade universal, durante períodos de luta dentro de contextos completamente diferentes. Por exemplo, em 1222, a guilda dos caçadores Mandinga, daquela parte da áfrica conhecida como Manden (que basicamente cobria partes do que é hoje a Guiné, Mali e Senegal), afirmavam que “Toda vida humana é uma vida”. Essa declaração foi inicialmente desenvolvida em resposta à instituição da escravidão do país. Em seguida declararam que “a essência da escravidão, hoje está extinta de uma fronteira à outra do Manden”.

Em outras palavras, durante o mesmo período em que os nobres Ingleses adotaram a “Magna Carta”para restringir os poderes do Rei John, Africanos estavam formulando declarações contra a escravidão com ênfase na universalidade do humano. Mais ainda, durante a luta contra a escravidão em São Domingos – em outras palavras, de 1791 a 1804 e além – os escravos Africanos que se rebelaram contra os Franceses e derrotaram os Britânicos, Espanhóis e também exércitos Franceses, criaram um ditado famoso que (em Crioulo) é assim “Tout moun se moun men si pas memn moun”, que significa, “toda pessoa é uma pessoa, mesmo que eles não sejam a mesma pessoa”. A idéia de que “toda pessoa é uma pessoa” ou “toda vida é uma vida” expressa a universalidade da humanidade em termos simples, e pode-se recorrer a elas durante as lutas emancipatórias. Essa idéia específica de universal é uma contribuição única dos povos da África para a humanidade.

 

Como você expressa o universal, hoje, em estruturas que não sejam o Estado?

 

A verdadeira questão da política, é como se manter o conteúdo igualitário nos movimentos de massa, para além das suas limitações históricas. O que eu quero dizer aqui é, que todas as subjetividades da política emancipatória estão limitadas no tempo; elas são “sequenciais” – elas surgem e depois desaparecem, geralmente voltando às políticas identitárias de Estado, Isso acontece porque toda política emancipatória combina, em uma dialética, aspectos da defesa dos interesses e identidades (pensamento estatal) com políticas de humanidade universal (pensamento emancipatório). Essa dialética é sempre insustentável e portanto é limitada no tempo, sua “sequência”.

Para se estender a sequência, a própria dialética tem de ser estendida. E isso não é nada fácil. Uma política emancipatória geralmente chega num ponto onde é difícil falar sobre o que ela deseja falar, sem que se sacrifique as idéias de universalidade, então, tipicamente a dialética de pensamento desaparece e a política se torna sobre as subjetividades de Estado. Isso normalmente ocorre através de um processo de representação; as pessoas não mais falam por si mesmas através de delegados, mas alienam a sua vontade (como Rousseau colocou) para representantes que falam por eles.

Foi isso que aconteceu na África do Sul; também foi o que aconteceu na praça Tahir no Cairo. Rojava, na região Curda da Síria – onde pessoas estão tentando estabelecer um território autogovernado baseado em princípios de socialismo democrático, igualdade de gêneros e sustentabilidade ecológica – pode mostrar uma maneira diferente de se fazer as coisas, mas é difícil fazê-lo dentro de um cerco militar.

A questão é que todo pensamento é limitado e limitante, porque opera através de categorias e conceitos. Se continuarmos pensando com velhas categorias, para tratarmos de questões novas, nós não seremos capazes de progredir para superarmos o capitalismo, ou mesmo para sustentarmos a vida. Isso é uma lição histórica.

Pessoas dentro de suas próprias circunstâncias tem de desenvolver suas próprias idéias sobre essa questão, mas o que é mais importante, é ouvir o que as pessoas têm a dizer quando estão lutando coletivamente, quando eles se tornam agentes de sua própria história. Nós sabemos, por exemplo, que a organização política é crucialmente importante, mas ela não precisa tomar a forma de um partido, e nem precisa ser direcionada em retirar poder do Estado. Deve estar claro que nós não vamos conseguir alcançar um mundo diferente baseado no que as pessoas têm em comum (chame do que quiser – costumava se chamar “comunismo”) através do controle do poder do Estado. É essencial que a dialética das pessoas pensando política sejam sustentadas, não podem colapsar em questões de representação. Uma organização de fora de estados tem de ser mantida, uma que se recusa a entrar no Estado e a jogar seu jogo de representantes, enquanto é capaz de se expressar politicamente e a coordenar movimentos politicamente.

Eu acredito que a Frente Democrática Unida (FDU) na África do Sul entre 1984 e 1986 foi uma organização com a qual podemos aprender, e meu livro fala muito sobre isso. A FDU fornecia um “guarda-chuvas” político para uma multitude de movimentos populares que ela guiava, organizava e unia politicamente, desse modo garantindo que elas operassem harmonicamente. Ao mesmo tempo, ela não queria o poder para si mesma.

Em termos de relação com o Estado, você tem que se perguntar qual é o tipo de Estado que queremos. Eu concordo com Raquel Guttiérez, que percebeu que, no Estado Boliviano sob Morales, era difícil, senão impossível ser um “Estado de movimentos sociais”. Um “Estado socialista” tinha de ser um Estado que ao mesmo tempo não é um Estado. Isso foi algo que Marx entendeu a muito tempo atrás. O estado tem de se “desvanecer” ele disse (mesmo que a formulação seja um tanto problemática), tem de haver uma maneira de fazer com que o poder se desenvolva de iniciativas populares e criatividade, que não monopolize toda a política para si mesmo. A dificuldade é que enquanto os Estados não são transformados, as organizações populares têm de encontrar uma maneira de funcionar independentemente do Estado e não serem controladas por interesses estatais. Foi isso que eu tentei sugerir no meu livro.

 

Qual seria a sua mensagem para aqueles envolvidos em lutas por justiça social e ambiental. Como podemos pensar liberdade?

 

Não existe receita e eu não desejaria prescrever uma. Qualquer atitude política que alguém desenvolva em direção ao Estado depende completamente das circunstâncias e conjunturas específicas. O que é imperativo é que os intelectuais e ativistas não substituam as pessoas lutando, por eles mesmos. A liderança consiste (dentre outras coisas) em orientação, e não controle ou representação. Liberdade é o processo dialético, onde todos nós superamos as nossas limitações e restrições, e percebemos coletivamente que nós somos capazes de atingir aquilo que anteriormente pensávamos ser impossível.

Facebook Comments Box

Written by el Coyote