A revolta do vinagre não foi causa de nenhum dos problemas atuais, mas o sintoma do desgaste do modelo oligárquico de democracia.
O que aconteceu em Junho-13 é um enigma cujo significado ainda está em disputa. A versão do establishment tanto liberal quanto da esquerda oficialista é negativa, com deboche às “Xornadas de Xunho”, insinuações de nihilismo (“micareta anti-política”), até acusações de inspiração fascista e teses olavianas de manipulação extrangeira, com adeptos entre os principais políticos do país, interessados em manter a atual estrutura do presidencialismo de coalizão.
Essas leituras são típicas de uma elite que não enxerga manifestantes como sujeitos políticos, mas objetos de uma massa manobrável e irracional. Como disse Bruno Cava: “usam o velho argumento hobbesiano-burkeano de que a multidão é caótica e volúvel”. Entretanto, a ascenção de novos atores políticos tanto à esquerda ou direita, mas com um maior grau de autonomia que ainda demora ou mesmo resiste ao jugo dos partidos tradicionais, indica que esta visão comum do establishment não decifra bem o enigma e, como no mito da grego da esfinge, está sendo lentamente devorada.
Uma interpretação alternativa ao enigma está na imagem de Rafael Braga na porta do presídio onde cumpria pena por estar nas manifestações. Rafael ainda está condenado. A foto, um protesto do seu advogado, custou a ele dez dias na solitária, o que mostra sua força. A política teria, além do tradicional eixo esquerda-direita, pelo menos mais um eixo cima-baixo onde o Estado, como poder centralizador e repressor, se opõe a um outro pólo, a Autonomia.
Para encurtar, considere dois fatos que podem ser depois questionados, como se fossem, por hora, verdadeiros: o governo Dilma representava bem o “campo da esquerda” e Junho-13 foi “de direita”. As teses partidárias sobre Junho-13, diante de um imaginado vetor político da revolta (A), só enxergam a suposta componente vetorial B e ignoram a componente de magnitude mais essencial, a C. Ao final das eleições de 2014, a re-inflada polarização partidária só discutia o tamanho do vetor B, sendo que a tragédia foi o total abafamento do vetor C, feito pelo sistema partidário como um todo.
Uma analogia resumida foi criada por Bruno Cava, que compara Junho a um 18 de brumário brasileiro, e recupera a referência do “primeiro a tragédia, depois a farsa” de Karl Marx: “tremendo esforço discursivo, financiado por verba grossa pelos partidos políticos, abasteceu a “guerra de narrativas”, opondo como numa comédia os estereótipos de coxinhas e petralhas, um duplo des-dramatizador. O “confronto” entre coxinhas e petralhas foi o duplo farsante, mais uma repetição cômica das jornadas de junho de 2013”.
A revolta do vinagre expôs a fratura desse sistema que não nos permite discutir políticas, “passe livre”, “saúde padrão FIFA”, e nos obriga a discutir políticos: Temer, Dilma, Aécio, Renan, Cunha, Moro, Janot, Lula, Bolsonaro e Levandowski. Vem daí a urgência em criminalizar qualquer tipo de ação direta, pois como resume Viveiros de Castro: “o Estado só reconhece dois tipos de pessoas, eleitores e vândalos”.
A idéia mais perigosa do Junho-13 é de que a democracia nunca avança na troca de representantes no andar de cima, mas na mudança das regras do jogo para empoderar os de baixo. Há na nossa sociedade, principalmente entre os setores que estão se organizando mais à esquerda mas até também entre os setores mais reacionários, uma demanda reprimida por autonomia, para vazar do Estado (executivo, legislativo e judiciário) um mínimo do seus 3 poderes para a sociedade civil, mas PSDB, PT e PMDB concordam que é perigoso, “anti-democrático”, pois só reconhecem a democracia feita nos acordões palacianos.
Enquanto isso, os partidos tradicionais formam o “extremo centro” que tenta impedir que as discussões políticas saiam dos estreitos limites do debate eleitoral e legitima poderes apenas para uma oligarquia de profissionais da política, que precisam que sejamos, nós, eternos amadores na prática política. Debocham de quem se diz farto dos políticos, como se esse senso comum fosse “apolítico”, quando é, na verdade, hiperpolítico.
Se, como acusa a esquerda oficial, o sentimento anti-establishment difuso da época foi mais capturado pela direita, é possível que, no imaginário popular, a esquerda no poder se comportava como um dos cães de guarda mais fiéis do status quo, ao defender o modelo em falência do qual faz parte: “As próximas eleições serão melhores, a democracia se auto-ajusta” – justifica o partido de esquerda, em frase semelhante ao lema ultra-liberal “Toda crise econômica passa, o mercado se auto-regula”.
Hoje, vivemos épocas de comunicação digital e participação instantânea. As maiores manifestações políticas são movimentos autônomos desde a “Marcha para Jesus” passando pela “Marcha da Maconha” até a “Parada LGBT” e que demandam formas mais líquidas de democracia. O empoderamento, mesmo com toda repressão, está tentando fluir para as bases locais e mais independentes, para as associações de bairros, casas de cultura, centros comunitários, cooperativas de trabalho e de crédito, sindicatos sem pelegos, redes de solidariedade, e assembléias populares.
Os partidos políticos seguem o caminho oposto. O própio PT, por exemplo, abandonou suas antigas políticas autônomas como “orçamento participativo”. O presidente da Fundação Perseu Abramo, ligada ao próprio PT, Márcio Pochmann, mostrou em pesquisa que o morador de periferia“vê o Estado como inimigo”, ou mais detalhadamente: “O Estado não cumpre o seu papel. Só demanda dos cidadãos (impostos) e não devolve em serviços de qualidade. É ineficaz!”.
Ou seja, o Estado, quando “funciona”, é como a máquina de morte na guerra contra os pobres nas periferias. A conclusão dessa pesquisa é que “Valores da periferia estão mais próximos do anarquismo do que do liberalismo” e que a demanda não é de Estado mínimo, mas de Estado “eficaz”. Mesmo assim, Pochmann ainda chama Junho-13 de “espontaneísta”, rótulo ainda ruim, mas menos pior que a paranóia negacionista de uma suposta “primavera colorida financiada por George Soros” alardeada por alguns de seus pares.
A discussão política precisa retomar sua capilaridade nas comunidades de uma forma análoga à das Igrejas evangélicas. Pode-se atuar bem antes da verticalidade das eleições, de forma diária e horizontal, revigorando organizações e redes de solidariedade que, independente de quem tome de assalto o governo, consiga emparedá-lo. Seria interessante mudar o paradigma de “Estado forte”, ligado ao centralismo burocrático, para “Sociedade forte”, dinâmica e com mais poderes populares.
Junho-13 foi a fratura aberta quando, percebendo que as nossas assembléias tinham virado verdadeiras feiras livres, as nossas feiras, por um curto tempo, ousaram virar assembléias. Aquele espírito ousado, plebiscitário, que remete à Ágora grega é o exato oposto ao atual sentimento pré-eleitoral de “fim de feira”, que, como diria Eduardo Galeano, nós estamos escolhendo restos para o molho com o qual seremos devorados.
Junho-13 foi uma movimentação de placas tectônicas, um terremoto cujas tensões que lhe foram causa ainda estão todas lá, sem resolução, como panela de pressão da demanda cada vez maior por autonomia nas sociedades modernas e apaziguada pela repressão e o recrudescimento da polarização partidária eleitoral. Ou o pouco que sobrou de legitimidade da Alta-Política tenta digerir o legado do Junho-13 ou o espírito de Junho-13, mesmo reprimido, vai continuar, como no mito da esfinge, devorando o que sobrou da Alta-Política.