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A tragédia da repetição da História e o estranho ressurgimento do stalinismo nos movimentos sociais e políticos brasileiros – Kauan Willian

         “Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa” – Karl Marx

“Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor.” – Paulo Freire

“A insurreição determina a revolução, isto é, a atividade rápida das forças latentes acumuladas durante a evolução precedente.” – Errico Malatesta

A reformulação de um comunismo por socialistas: improvisação e sincronia

Em 1956 um grupo de historiadores marxistas proeminentes da Inglaterra rompe com o Partido Comunista após a invasão da Hungria pela URSS e outras práticas, condenadas por Christopher Hill, Perry Anderson, Rodney Hilton, Dona Torr, dentre outros. Esse grupo dará o tom intelectual para a renovação marxista global, sendo a referência de estudos até hoje sobre a classe trabalhadora. Com o avançar de suas pesquisas, a crítica ao stalinismo e seus sucessores não vai ser apenas política, mas vai encontrar na teoria e prática historiográfica e na própria experiência de classe seus principais lugares. Uma resposta categórica a autores próximos teoricamente do stalinismo como Louis Althusser, será “A Formação da Classe Operária Inglesa”, lançado na década de 1960, por Edward Thompson. Ele refez a história do operariado inglês e rebate a ideia de que a formação de classe operária se daria apenas com sua consciência de si – e com a formação de um partido ou programa -, mas ao contrário, para a consciência de si ser gerada, era necessária uma experiência anterior de agentes em meios às transformações econômicas e sociais (THOMPSON, 1987). A construção constante da classe trabalhadora, portanto, não segue diretamente a economia, mas é uma resposta da reformulação cultural de trabalhadores diante de problemas que as forças produtivas colocam. Classe e luta de classes, nessa visão, existem antes da consciência de classe (MATTOS, 2010).

A ideia de uma (re)construção socialista por baixo não apenas chegou para intelectuais e, com o desgaste da URSS, movimentos sociais e revolucionários faziam mais que defender o regime contra o capitalismo, mas de reformar métodos de inserção de idéias socialistas entre a classe trabalhadora. Após a repressão brutal à comunistas na Ditadura Civil-Militar no Brasil e a consequente saída da esquerda de suas bases e dos ambientes periféricos, era preciso testar novas idéias e experiências, dessa vez mais próximas, geograficamente falando. Nei Orzekovski, do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), hoje um dos movimentos sociais com mais respaldo na América Latina, por exemplo, conta que

“Além de entender o pensamento filosófico, crítico e revolucionário de Che, o desafio é compreender uma das coisas principais que ele demonstrou em sua prática. Negar os dogmas e os sectarismos que se implementavam na época, a partir da orientação do partido comunista da Rússia. A abertura de compreender o mundo e a realidade de forma dialética e dinâmica é uma marca do pensamento de Che. Ele fazia uma crítica às orientações fechadas que vinham do socialismo russo. Além disso, demonstrou um esforço em pregar teoria e prática cotidiana, na vida das pessoas, partindo dos valores, do trabalho voluntário, da solidariedade (Nei Orzekovski citado em RUBBO, 2016. p.238.)”

A luta armada e as guerrilhas sem apoio total das bases eram impossíveis num país de extensão continental, mas a idéia de improvisação, inserção cotidiana e coletiva caía como uma luva para a reconstrução da esquerda no Brasil, o que garantiu que a hegemonia política da esquerda, depois de 1980, passasse do PCB para um partido provindo da luta diária sindical do conhecido ABC de São Paulo junto com um trabalho de base eclesiástico progressista.  Se o Partido dos Trabalhadores nunca foi radical ou não, como e quando deixou de ser, não é a questão, mas a questão é que o trabalho de base sindical nesse período – inclusive de oposição a ala do PT no ABC – foi efetivo, porque era sincrônico com a realidade (KECK, 1991).

Imagem de uma assembleia de metalúrgicos nas chamadas greves doo ABC

O sonho de ser o opressor para “libertar”

           “Poder Popular”, termo usado pelo albanês Enver Hoxha, fundador do Partido do Trabalho da Albânia e líder da Albânia Socialista, por Salvador Allende na construção das Unidades Populares no Chile, também impulsionado pela reconstrução da esquerda mexicana de matriz zapatista – vitoriosa diga-se de passagem – com correspondência de comunistas após o maio de 1968, foi uma saída para vários Partidos Comunistas e Trabalhistas e das demais vertentes socialistas e anarquistas no mundo.  Com a queda da URSS, o avanço do neoliberalismo e o consequente déficit da consciência política entre a população dos países em desenvolvimento, era um momento anterior, de não discutir táticas e programas pós-revolucionários, mas de construção de uma cultura política no mínimo progressista que exercitasse trabalhadores no sentido de poderem decidir suas próprias conquistas, projetos e órgãos democráticos antes de uma destruição ou tomada do poder (SAMPAIO, 1984).

         Nesse prisma, parece ser estranho e incomum que discursos e tentativas de inserção stalinistas e, inclusive o resguardo de práticas capitalistas em países de originária matriz socialista, estejam sido voltadas à tona na esquerda nos últimos tempos. Mas talvez não seja tanto assim se analisarmos que os paradoxos políticos, como o fascismo, nasçam de crises do liberalismo e a incapacidade da social-democracia em lidar com tais questões. O pós-modernismo e a luta individual na cultura também não trouxeram resultados. Querendo ou não, o stalinismo foi uma força social relevante para a derrocada do nazismo e lutas de libertação nacional (TCHUIKOV, 2017).

            Para um jovem formado ou que construiu as jornadas de junho de 2013, que fortemente criticava a social democracia e o liberalismo, vendo que táticas antiorganizacionistas libertárias, embora radicais, fossem manipuladas por setores ultradireitistas, e longe de um trabalho de formação contínua que unia prática e teoria à realidade, só um exemplo histórico, mesmo sem conexão com a construção anterior e atual da América Latina, pode representar uma vitória, no seu ideário hiper radical, contra a volta do fascismo. É um fato, como Paulo Freire menciona, que “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor” (FREIRE, 2003, p.54), o que torna flagrante que numa população não educada politicamente, que tenha uma realidade violenta marcada pelo patriarcalismo e um capitalismo não desenvolvido nasçam tais expressões políticas autoritárias. Também entendemos, por isso, as denúncias de fascistas infiltrados em grupos neostalinistas ou social-democratas como acompanhamos recentemente (Elcoyote.org, 2019).

Imagem da jornada de junho de 2013 em São Paulo. Apesar de contar com uma heterodoxia ideológica, foi resultado de um trabalho de base do Movimento Passe Livre – movimento que se define horizontalista com referências socialistas e anarquistas heterodoxas.

Se uma teoria é supostamente mais efetiva em nossa realidade ela primeiramente tem que assumir que o Partido dos Trabalhadores teve a hegemonia na esquerda a partir de 1980, que ainda colhe seu trabalho de base até hoje – coisa que células e organismos comunistas mais sérios já fazem. Também tem que assumir que desde os anos 2000, com os protestos anti-globalização, nas jornadas de Junho de 2013 e nas ocupações de escolas em 2015, a prática hegemônica era anarquista, socialista libertária e autonomista, ou seja, eram os principais agentes contra o neoliberalismo e a social-democracia nas ruas. Outra questão latente é entender e assumir que o partido de esquerda que mais cresce na representação política não possua centralismo democrático, o PSOL. Evidentemente, as críticas sobre falhas teóricas e falta de organicidade para esses elementos fomentarem uma revolução são válidas, mas não me parece correto afirmar e nem resolver a questão para ambos os lados e para a própria classe trabalhadora que esses são elementos “não políticos”, “liberais” e “contra-revolucionários” e que maior organização e programa resolveriam direto o problema das bases para uma revolução efetiva. Argumentos que falam de falta de organização ao mesmo tempo que não há inserção social e tradição entre a classe trabalhadora daqui é um paradoxo evidente.

Portanto, mais que disputar atos e organismos, a intenção de tomada de poder,  é preciso entender o conceito de hegemonia desenvolvido pelo intelectual italiano Antonio Gramsci. Tentando compreender os motivos que levaram a falência do marxismo ocidental, Gramsci coloca em evidência as diferenças estruturais nas formações sociais da Europa Oriental e Ocidental e a necessidade de adotar estratégias políticas distintas das que foram adotadas na Rússia, já que o capitalismo avançado nos países ocidentais fomentou o fortalecimento das superestruturas. Para ele, já que um grupo político é hegemônico na cultura e ideologia da população, militantes e intelectuais contrários devem participar da vida prática do grupo social que representam formando um grupo social e cultural, que disputariam primeiramente o campo da ética, depois o campo essencialmente político (ALVES, 2010). Gramsci afirma que

“A realização de um aparato hegemônico, enquanto cria um novo terreno ideológico, determina uma reforma das consciências e dos métodos de conhecimento, é um fato de conhecimento, um fato filosófico (GRAMSCI, 1978, p. 52)”

Assim, não me parece que concertar um problema de direção irá resolver o tecido social da luta de classes, uma vez que a maioria da população não tem formação política, mas tem sua experiência de classe, evidentemente. Nesse sentido, a tarefa da esquerda sempre foi transformar elementos caóticos e confusos em política, o que faz com que um protesto ou insurreição nunca nasça de maneira organizada e dentro de moldes políticos estabelecidos. Lênin nunca teve uma maioria que aderiu seu programa político na derrubada de poder, mas os sovietes – conselhos operários com socialistas de matizes diversas – concordavam com uma revolução radical. O momento de estabelecimento programático político strictu sensu se deu após esse processo. E mesmo assim parece que isso seja difícil de se repetir, já que como disse Marx a história só pode se repetir como farsa ou como comédia (MARX, 2011, p.25).

O que revoluções efetivas no dia hoje nos ensinam – como a zapatista e a Revolução Curda– é a importância sobre a inserção dialética entre organização e massas que deve ser feita a fim de influenciar – e não necessariamente guiar – um processo revolucionário. E é a sincronia entre realidade e revolução, além da junção de vários interesses, resultando um socialismo típico, que são mais importantes que adotar um modelo passado de um governo estabelecido anteriormente, que tinha suas características próprias. Recusar e temer uma rebelião e julgá-la como errada – como em 2013- não disputando-a, mas não apresentar saídas nela e nem impulsioná-la foi um erro que pagamos com a falta de radicalidade para combater o fascismo hoje.

Enquanto a social-democracia ascendeu no Brasil e caiu, o zapatismo continua forte e num processo revolucionário exemplar para a classe trabalhadora e oprimidos

Referências

ALVES, Ana Rodrigues. O conceito de hegemonia: de Gramsci a Laclau e Mouffe. Lua Nova, São Paulo, 80: 71-96, 2010

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.

GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

KECK, Margareth. PT: a lógica da diferença: o Partido dos Trabalhadores na construção da democracia brasileira. São Paulo, Ática, 1991.

MALATESTA, Errico. Escritos revolucionários. São Paulo: Hedra, 2014.

MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.

MATTOS, Marcelo Badaró. E. P. Thompson no Brasil. Outubro, São Paulo, n. 14, 2010.

SAMPAIO, Plínio. Construindo o poder popular: as 6 condições de vitória das reivindicações populares. Editora Paulus: 1984.

TCHUIKOV, Vassily. A conquista de Berlim: 1945 – A derrota dos nazistas. São Paulo: Contexto, 2017.

THOMPSON, Edward. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 

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Written by Kauan Willian

Doutorando em História Social (USP). Historiador da classe trabalhadora e professor da rede municipal de São Paulo, militante sindicalista e ativista antiespecista.