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A farsa da “Revolução Verde” de mercado: o desafio do veganismo político diante das ongs e ativistas liberais e neoliberais no movimento animalista no Brasil – Ana Mota e Kauan Willian

O nascimento do veganismo político

“O veganismo é uma forma de viver que busca excluir, na medida do possível e do praticável, todas as formas de exploração e de crueldade contra animais, seja para a alimentação, para o vestuário ou para qualquer outra finalidade” escreveu Donald Watson, criador do “Vegan Society”, em 1944. Ativistas desse organismo tinham aderido o nome “vegano” em substituição de “vegetariano”, pois muitas pessoas que antes apenas se alimentavam de vegetais e buscavam a libertação de animais não humanos ou direitos para seres sencientes transformaram tal movimento em um estilo de vida e dieta, passando inclusive a comer ovos, leite, usar couro e ignorarem confinamentos e torturas para testes em animais (VEGANISMO.ORG, 2005).

Embora o veganismo tenha esse nome a partir da metade do século XX, a reflexão de uma ética com valores da sociedade contemporânea que envolvia animais não humanos não começou aí. Eliseé Reclus, um importante militante da Primeira Internacional dos Trabalhadores que havia fundado o socialismo libertário e o sindicalismo revolucionário com Mikhail Bakunin e outros, em pleno fim do século XIX, refletia que o capitalismo industrial havia afastado os homens dos demais animais, potencializando sua objetificação e coisificação, que já existia, mas aumentava de maneira potencial. (RECLUS, 2010, p.7). Eliseé Reclus estendia seu internacionalismo aos animais não humanos, já que influenciado por textos contemporâneos como de Darwin, sabia que todos os animais eram sencientes e alguns tinham intima relação com a linha evolutiva dos humanos. Portanto, não eram seres inferiores por não crerem em Deus ou deixados para serem dominados, como os religiosos de sua época afirmavam, e também não eram inferiores mentalmente, como os antropocêntricos também acreditavam. Nesse sentido, mostrava a relação do avanço do capitalismo com a coisificação de animais, e a degradação do meio ambiente, ressaltando a importância de resgatar e manter tradições mais próximas com animais e outros seres vivos como “a indígena do Brasil [que] se cerca voluntariamente de toda uma multidão de animais, e em sua cabana e na clareira circundante há antas, veados, gambás” (RECLUS, 2010, p.1-2), já que a negação disso teria implicações para o próprio planeta e para a vida de animais humanos também. Reclus também mostrava que as guerras nacionais, que boa parte dos anarquistas se opunham, tinham relação com a dominação de animais, já que “não é uma digressão mencionar os horrores da guerra em conexão com o massacre de gado e os banquetes para carnívoros. A dieta corresponde bem aos modos dos indivíduos. Sangue chama sangue (RECLUS, 2010, p.8).”

O escritor russo Liev Tolstói, conhecido também como Leon, citado por anarquistas e socialistas, embora não alinhado a uma ideologia política, aderiu ao vegetarianismo em 1885 e, ao escrever “No que eu acredito” fazia a relação entre as guerras – tema de seus principais escritos e que era rebuscado pela família socialista – com o ato de comer carne. Para ele, afirmando que “enquanto houver matadouros, haverá campos de batalha” estava evidenciando sua interpretação pessoal da Bíblia e dos ensinamentos de Jesus sobre o sermão da montanha. Ele almejava viver uma vida sem os horrores do Estado e do capitalismo, mais simples possível e com o contato com a natureza sem envolver o aprisionamento e morte de animais, humanos e não humanos (TOLSTÓI, 2011).

Mas, a maior frente pelos direitos dos animais foi liderada pelo movimento feminista, já a partir da sua segunda onda, no século XX e depois, na terceira onda. A tradição de mulheres que relacionavam às guerras ao predadorativismo humano desembocou em reflexões importantes sobre a própria construção da masculinidade, da dominação de gênero em consonância com a dominação animal, como nos escritos de Françoise d’Eaubonne, Vandana Shiva, Susan Mann e outras, na década de 1970. Na obra “A Política Sexual da Carne; a relação entre carnivorismo e a dominância masculina”, em 1990, a ativista Carol Adams mostra como a sociedade contemporânea patriarcal foi construindo uma noção do consumo de proteína animal como viril e masculinizada, do sangue e vitória, fazendo com que, em contrapartida, a proteína vegetal fosse considerada algo feminina e feminilizante. Além disso, mostra como a invisibilização do sofrimento de animais e a exposição de corpos destes teve relação histórica intrínseca com a invisibilidade do sofrimento de mulheres e da objetificação de seus corpos, em níveis diferentes é claro, mas com uma relação de dominação que favorecia uma espécie, e especialmente um gênero da espécie humana (ADAMS, 2012). É por isso que a autora defende a intersecção, a inter-relação das lutas antiespecista e feminista, assim como ecológico, ambientalista e feminista, uma tradição que ficou chamada de ecofeminista.

Dessa maneira, o veganismo foi se tornando uma luta não só pela libertação animal, mas em conexão com libertação humana visando uma sociedade melhor e se imbrincando com o socialismo, o feminismo e em contraposição com o capitalismo, o patriarcado e outras opressões. Alguns dos princípios do chamado veganismo abolicionista apontam que:

1- Todos os seres sencientes, humanos ou não-humanos, têm o direito de não serem tratados como propriedade alheia. 2. Nosso reconhecimento desse direito básico significa que devemos abolir, em vez de meramente regulamentar, a exploração institucionalizada dos animais — porque ela supõe que os animais sejam propriedade dos humanos. 3. Assim como rejeitamos o racismo, o sexismo, homofobia, ou qualquer tipo de preconceito, rejeitamos o especismo. A espécie de um ser senciente não é razão para que a proteção a esse direito básico seja negada, assim como raça, sexo, classe ou orientação sexual não são razões para que a inclusão na comunidade moral humana seja negada a outros seres humanos (CHARLTON; FRANCIONE, 2015).

Fica claro nos pontos mencionados o “abolicionismo” em contraposição do “bem estarismo” de alguns ativistas. O veganismo político e abolicionista acredita que, ao não considerarmos animais como propriedade, a maioria deles, seriam re-introduzidos em outros habitats longe de espaços urbanos e poucos ainda em espaços rurais que humanos ocupam. Dessa maneira, espécies fomentadas com a ação humana, como algumas de bois, galinhas, cachorros deixariam de existir, dando lugar a espécies nativas que foram destruídas. O “bem estarismo”, por sua vez, defende que animais podem viver melhor com os humanos, não sendo torturados nem mortos, mas sendo usados seus excrementos excedentes de forma pacífica.

Integrantes do Animal Liberation Front, grupo antiespecista na Inglaterra, praticando atos de ação direta para salvarem animais usados em testes de empresas

Outra questão destacada pelo veganismo abolicionista não é só a alimentação ou ações individuais, mas o combate ao especismo, que seria o sistema de dominação que considera que seres humanos podem dominar outras espécies, o que se imbrica diretamente ao combate de outras opressões como raça, gênero, sexualidade, etc.

No Brasil, o veganismo chegou pelos mesmos militantes e ativistas; feministas e eco-feministas, socialistas que haviam criticado os moldes do modelo soviético de tratar a questão ambiental, mas revisando posturas e criticando o imperialismo e a sociedade de consumo, o movimento punk dos anos 1980 reciclando as considerações de anarquistas como Reclus e outros e influenciados também pelo movimento “straight edge”, uma subcultura que visa se abster de toxinas nocivas ao corpo, uma delas, para muitos, a carne e derivados. Todas essas vertentes eram abolicionistas.

Não obstante, o veganismo, nos dias atuais, está sendo desafiado por correntes liberais e neoliberais que acreditam que podem lutar num sistema patriacal, racista e capitalista e libertar animais sem a libertação humana. Ongs que focam na relação do “bem estar” de animais nos abatedouros ou apenas propagandeando o consumo de vegetais e que celebram que grandes holdings e empresas predatórias façam produtos “veganos”, mesmo tendo laboratórios que testam em animais. Essas ongs, criadas nos Estados Unidos, invadiram o Brasil e realizam as mesmas performances e táticas, com esse prisma liberal, no movimento animalista e ecológico no país, revogando a interseccção de lutas. Estes se autoproclamam “estratégicos”, encarando estratégia uma negociação com o próprio imperialismo, o agronegócio e outros setores para corroerem essas empresas, através do consumo, para que se tornem veganos ou que parem testes em animais. Por isso, até a revista Isto É, no mês passado, lançou uma capa e manchete escrita “As Gigantes aderem à Revolução Vegana”, celebrado por esses ativistas liberais e capitalistas. Algumas dessas ongs, que estão mais para empresas, receberam supostamente dinheiro de grandes indústrias, que assim como aconteceu com feminismo e o movimento negro, almejam cooptar a luta de libertação animal, já que essa também cresce. E que assim como aconteceu com outras causas, essa cooptação não garantiu o fim de nenhuma exploração.

Alguns dados das ongs “empresas” que se dizem veganas

Quando veganos abolicionistas dizem que muitas ongs pelos direitos dos animais são liberais, não estamos falando apenas de suas práticas que visam a conscientização da classe média através de vídeos de tortura, que focam apenas no consumo das pessoas e fazem propaganda de produtos vegetarianos e veganos. Há muito tempo havia denúncias anônimas e boatos que muitas ongs recebiam dinheiro de “doadores” com relação de empresas que fabricam produtos vegetarianos, mas tem intensa relação com a exploração animal e humana.

Uma informação sistematizada foi publicada pelo portal Vista-se em agosto de 2017 afirmando que a “Mercy For Animals, Humane Society International (HSI), Animal Equality, Humane League e Compassion in World Farming receberam, juntas, US$ 3.550.000,00 (mais de R$ 11 milhões) para promover campanhas contra a produção de ovos por meio de gaiolas de bateria.” Para o portal, acontece que, além de promoverem campanhas contra a produção desses ovos, “a alternativa apresentada pela indústria e apoiada por muitas ONGs é a produção de ovos com as galinhas livres de gaiolas. Daí o termo “cage-free”, em inglês, livre de gaiolas (VISTA-SE, 2018).”

Todos os veganos sabem e estudam, quando estão parando de consumir produtos relacionados à exploração animal, que toda produção de ovos, mesmo as de “cage-free” matam todos os pintinhos machos ao nascerem e que, livre de gaiolas, não significa sem sofrimento. As galinhas que não são criadas em gaiolas, são criadas em galpões lotados, morrem pisoteadas por outras galinhas, que também foram modificadas geneticamente, sofrem com canibalismo e no final, quando a produção de ovos cai, as galinhas são mortas, como é possível ver no documentário “Dominion” de 2018.

Imagem de galinhas criadas a partir do método “cage-free”

Mesmo que essas acusações de associações com indústrias sejam refutadas, é por isso, e pelas suas próprias perfomances, que desconfiamos quando organizações como a Sociedade Vegetariana Brasileira apoiam um produto da Unilever, dizendo que é “vegano”. A Unilever, uma multinacional britânica-neerlandesa controla boa parte dos produtos de diversos tipos nas prateleiras dos supermercados brasileiros e está relacionada, em várias de suas fábricas, com mais-valia extrema, e possuí um laboratório próprio para testes em animais. Mesmo que os produtos não passem por testes diretos em animais, com certeza sua produção foi estudada como projeto nessas instalações, não podendo se dissociar desses atos de opressão. Não temos informações sobre ongs que recebem valores e donativos da Unilever, mas devemos nos perguntar qual o interesse de uma multinacional em fazer rótulos “veganos” em alguns de seus produtos – menos de 0,1% – enquanto torturam, matam e controlam milhões de animais. A estratégia de ocupar essa empresa é bem ingênua, já que apenas 14% da população brasileira é vegetariana, incluindo aí ovolactovegetarianos, que não estão interessados, pelo menos no momento, com a libertação animal. Demoraria muito para mudá-la, enquanto podemos apoiar empresas e produtos verdadeiramente veganos, e disputar pequenos proprietários, aí sim, muito mais influenciados pelos atos de consumo do que grandes empresas multi-nacionais.

Qual é a verdaderia estratégia? Para além do mercado, consumo e conscientização da classe média

Se, como mostrado, de um lado há indícios de que muitas ongs “empresas” recebem dinheiro das grandes marcas, e que suas perfomances não estão visando a derrubada de nenhum sistema de opressão, de outro, multinacionais vendem produtos falsos veganos, essa estratégia, portanto, é patrocinada pelos seus próprios algozes. Podemos afirmar que ativistas desses organismos não estão combatendo estrutura nenhuma. As próprias empresas sabem o motivo que estão investindo e sabem como aumentar seus lucros fazendo tanto produtos que exploram animais e outros que supostamente não exploram, mas ainda envolvidos com trabalhos análogos à escravidão, mais-valia extrema, etc. Uma “estratégia” que se desvincula do veganismo histórico que visava destruir uma estrutura contemporânea de opressão, que envolvia o capitalismo, o patriarcado e outras opressões, como vimos.

Mas qual seria a verdadeira “estratégia” dos veganos iniciantes, já que parece que, nessa conjuntura, o capitalismo, o patriarcado, o especismo e outros sistemas de dominação estão longe de se findar? Acreditamos que o primeiro passo para o veganismo não se perder é se findar novamente às suas bases e alicerces. Devemos disputar e inserir demandas ecológicas, animalistas e veganas nos movimentos sociais sensíveis a essa causa e que façam intersecções, como no movimento feminista, que sempre foi apto a isso. Dessa maneira, se o veganismo apresenta uma ameaça aos latifundiários do país, é necessário se fundir a movimentos que também se apresentam assim. O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) desde o fim do século XX é um dos movimentos que mais crescem e que ameaçam essa ordem. A ecologia desse movimento, visando uma soberania alimentar dos trabalhadores diante da alienação da alimentação e da indústria, casa bem com o veganismo e, por isso, há muitos grupos no MST que já produzem e servem comidas vegetarianas e produtos sem nada de origem animal (PASSOS; SILVA, 2019). Outra frente são as lutas indígenas que se apresentam como uma resposta necessária aos problemas de terras e desmatamento no Brasil

Produtos orgânicos e veganos na Feira da Reforma Agrária do MST em 2016

Como revolucionários não devemos esquecer que o principal motor da história é a classe trabalhadora, portanto, não vamos ter em mente uma revolução a partir do consumo ou pela classe média, que inclusive, a partir do consumo de alumínios, plásticos e outros, não findam a degradação do meio ambiente. Devemos impulsionar, criar e ajudar coletivos sindicais e de trabalhadores, ações comunitárias, escolas e outras para que ganhem uma consciência sobre plantar, colher, refletir sobre a sua própria alimentação e, com isso, podemos inserir o antiespecismo na população.

Devemos também pressionar o Estado e os representantes políticos pelas causas animalistas, ecolológicas e veganas, sabendo também que esse tipo de pressão tem limites e que a ação direta diante de canis, abatedouros e outros espaços clandestinos e denúncias sobre abusos de animais não só para as autoridades, mas para uma rede antiespecista, se faz necessário. Nesse interím devemos lembrar que a mesma rede que aprisiona, tortura e mata animais em massas, é a mesma que mata, escraviza e tortura seres humanos. A morte de um cachorro em uma grande rede de mercado e, num espaço curto, a morte de um jovem negro, não são por acaso.

Referências

ADAMS, Carol. A política sexual da carne: a relação entre carnivorismo e a dominância masculina. Tradução de Cristina Cupertino. São Paulo: Alaúde, 2012.

CHARLTON, Anna; FRANCIONE, Gary. Animal Rights: The Abolitionist Approach. 2015.

CHAVES, Fábio. “ONGs receberam R$ 11 milhões para promover o fim das gaiolas na produção de ovos de galinha.” In: https://www.vista-se.com.br/ongs-receberam-r-11-milhoes-para-promover-o-fim-das-gaiolas-na-producao-de-ovos-de-galinha/. Acesso em 20 de fevereiro de 2019.

DELFORCE, Chris. “Dominion”. Melbourne, 2018.

KIM, Laura.DONALD WATSON – VEGAN SOCIETY.” In: veganismo.org.br/p/donald-watson-vegan-society.html, 2005. Acesso em 14 de janeiro de 2019.

PASSOS, Jobson; SILVA, Izelia da. “Na Bahia, agroecologia é o caminho percorrido para transformação social.” In: http://www.mst.org.br/2019/02/07/na-bahia-agroecologia-e-o-caminho-percorrido-para-transformacao-social.html?fbclid=IwAR2hLqOXASLaXBM2sUmxEySv6bs—HBj_mOrWivn_g4vH_8-d3QagZSntWQ, 2019. Acesso em 25 de fevereiro de 2019.

RECLUS, Eliseé. A Anarquia e os animais. São Paulo-Piracicaba: Ateneu Diego Giménez, 2010.

TOLSTÓI, Liev. Minha religião. São Paulo: A Girafa, 2011.

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Written by Kauan Willian

Doutorando em História Social (USP). Historiador da classe trabalhadora e professor da rede municipal de São Paulo, militante sindicalista e ativista antiespecista.