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Analisando alternativas de luta à crise democrática na América Latina

Por Anne Ledur e Bruno Lima Rocha, 19 de dezembro de 2019

Um levantamento publicado pelo Jornal O Globo, em novembro deste ano, denunciou a fragilidade das democracias sul-americanas no último século. De acordo com a investigação, a cada dez meses, um presidente não conseguiu terminar seu mandato por razões políticas. A pesquisa considerou os 12 países da América do Sul: Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile, Colômbia, Bolívia, Venezuela, Equador, Peru, Guiana e Suriname, onde 114 chefes de Estado tiveram de abandonar seus cargos, entre 1912 a 2019. Assim, na política latino-americana, a baboseira liberal não vale. A única certeza é a inconstância, a possibilidade de virada de mesa e a intervenção do imperialismo. Outro padrão é a condição recalcitrante de um republicanismo vazio. A ilusão é a força motriz da reprodução de padrões social-democratas da Europa em nossos países. Ilusões perigosas, governos de centro-esquerda fracos, ideologicamente frouxos e com síndrome de Estocolmo. No século XXI, a modalidade de derrubada de governos é outra. Vejamos o que iniciou em Honduras em junho de 2009, ganhou contornos quase de drama caricato no golpe paraguaio de 2012 e atravessa nossas realidades.

No Brasil, o Estado de Exceção operando sobre o Poder Executivo – uma constante para a população mais pobre e a maioria negra – encontrou lugar mais recentemente em 2016, com o impeachment de Dilma Rousseff. Podemos caracterizar a deposição da ex-presidenta como um Golpe de Estado em função de três elementos.

O primeiro e o mais visível foi ao se publicizar uma gravação da ex-presidenta com o ex-presidente Lula, quando não havia autorização do Supremo para aquela gravação. Pela regra, essa gravação deveria ter sido eliminada. Grampear uma presidenta da República no exercício do mandato e, ao mesmo tempo, de outros ministros de Estado, como o então ministro Jacques Wagner, e depois tornar público o conteúdo da conversa, caracteriza um arranjo político, jurídico e midiático. Logo, se não houvesse a presença e a criação de consenso da opinião pública através da opinião publicada, seria impossível a queda do governo e a mudança de regime (no caso, abalando o Pacto Constitucional de 1988).

O segundo elemento foi usar o artifício das pedaladas para justificar o impeachment. Mesmo tendo uma legalidade contestável, as pedaladas são um procedimento muito comum em vários mandatos e continuaram sendo.

E o terceiro elemento foi porque, num impeachment, os direitos políticos da presidenta teriam sido cassados, e não foram. Então, não se localizou uma causa-crime. Teria sido um procedimento do tipo parlamentarista, num voto de desconfiança, num regime brasileiro, que é presidencialista.

O arranjo político que resultou no impeachment de Dilma teve, evidentemente, um objetivo maior.

O volume de denúncias difundidas pelo The Intercept Brasil – que também tiveram leitura e checagem co-organizadas por uma série de consórcios jornalísticos -, traz material suficiente para provar que havia uma unidade política dentro da força-tarefa da Lava Jato e uma relação entre Ministério Público e juiz – que operava quase como um juiz-inquisidor – na intenção de interferir no resultado das eleições de 2018.

Com o ex-presidente Lula liderando todas as pesquisas de intenção de voto, era necessário removê-lo da corrida eleitoral. Avaliando os processos do Tríplex do Guarujá e do sítio de Atibaia, a impressão é de que Lula já havia sido condenado de antemão e todo o processo serviu para legitimar a sentença. Isso não significa que Lula não seja culpado, entretanto, nos casos específicos em que foi condenado, não houve provas consistentes contra o ex-presidente. E, na ausência de provas, ninguém pode – ou ao menos jamais deveria – ser culpado.

O que deveria acontecer, em um “verdadeiro” Estado Democrático de Direito, é a anulação dos processos, em função da parcialidade do juiz Sérgio Moro – ainda mais evidenciada com a sua saída da magistratura para tomar posse como titular do Ministério da Justiça do Governo Jair Bolsonaro. Isso seria o mais consistente, para não radicalizar o apreço sobre o Judiciário e o Ministério Público.

A mudança no rumo dos acontecimentos poderia ser indicada a partir do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da Ação Declaratória de Constitucionalidade que derrubou as prisões em segunda instância, usadas e abusadas pela Operação Lava Jato. No entanto, ao que tudo indica, a decisão do STF esteve mais correlacionada a uma disputa de posições entre o Supremo e a força-tarefa, disputas intra-Supremo – a correlação de forças dentro do aparelho jurídico e dentro do poder político –, e até a algum tipo de pressão dos militares do que necessariamente um rigor do Estado Democrático de Direito ou a defesa de uma Cláusula Pétrea da Constituição. Nesse sentido, se fôssemos interpretar a Constituição Brasileira e o orçamento vinculado do Brasil sob o Controle Social, jamais poderiam ter aprovado a PEC 55, por exemplo. No entanto, ela foi aprovada e não entrou em nenhum problema de constitucionalidade.

Por que o Supremo não fez este movimento, de proibir as prisões em segunda instância, antes de 2016? É uma grande dúvida, mas cuja suspeita é de que o STF, no mínimo, foi omisso em todo o processo.

Com a omissão do Poder Judiciário, fica muito mais “lisa” a relação entre setores de classe dominante que exercem o poder e as elites gerenciais de transnacionais ou de capital financeiro que operam no País com o poder político. Essa relação promíscua, inúmeras vezes, acaba ultrapassando a própria soberania do povo. E isso é uma espécie de regra do jogo do capitalismo, que se verifica, com muito mais intensidade, em capitalismos periféricos.

Jogo de interesses

O jogo de interesses – balizado pelas instituições concretas e os sistemas de crenças – ficou muito mais visível no Brasil a partir de 2019, com o Governo Bolsonaro. Se há algum consenso das direitas pós-2015 ou pós segundo turno 2014, é a agenda ultraliberal do “Chicago Boy” Paulo Guedes, que foi referendada pelo Congresso.

Há vários interesses setoriais como, por exemplo, da indústria brasileira e de seus controladores, que acumulam com a jogatina financeira mais do que com a própria indústria – que, por gerar emprego direto e ter acesso a empréstimos, a importação de maquinário, a bens de produção, de capital etc., é importante ser mantida, até para ser uma forma de se extrair mais recursos.

Outra possibilidade é esse conflito dentro do agronegócio, do agribusiness brasileiro, entre mais entreguismo ou menos entreguismo, como por exemplo, entre setores representados pela senadora Kátia Abreu, pelo também senador Blairo Maggi (ambos ex-ministros do seu setor) e a linha ainda mais dura, com a UDR ainda ocupando cargos no Governo Bolsonaro.

Uma terceira possibilidade é este enorme mercado de exploração da fé – não confundindo evangélico com direita evangélica, embora a direita evangélica consiga capitanear o discurso do evangelicalismo ou dos evangélicos na política, o que é uma pena. Infelizmente, as posições mais conservadoras e a favor do “ocidente imaginário da fé cristã” terminam por gerar um comportamento de manada nas igrejas protestantes, evangélicas e pentecostais, ao menos aparentando ter havido uma posição uníssona no segundo turno a favor de Bolsonaro e suas barbaridades. Casos como a “mamadeira peniana” após os protestos do #EleNão representam esse momento.

Crise continental

O modelo ultraliberal que deseja-se implementar no Brasil é o mesmo que colapsou o Chile. As condições de vida da sociedade chilena implicam numa concentração de renda de 23 a 28% no 1% mais rico. Nossos vizinhos têm um texto constitucional cuja espinha dorsal foi escrita ainda durante a Ditadura de Pinochet – com muita participação de juristas e políticos do partido UDI, que é a coalizão de governo com Piñera (este da RN, um partido oligárquico de trajetória golpista). E, no Chile, praticamente quase nada é público e nada é gratuito. Então, o custo de vida é muito alto. Além disso, o ultraliberalismo é algo que implica uma carga tributária muito regressiva. Ou seja, quanto menos se ganha, mais se é tributado. Existe classe média, mas muito instável nas suas condições materiais. Logo, o descontentamento é ainda maior.

Os protestos realizados recentemente pelos chilenos visaram a demonstrar para as elites políticas que topam negociar e são especialistas em traição popular que estas camarilhas (direita RN-UDI, centro-direita capitaneada pelo PDC e seus rachas e centro esquerda do Frente Amplio liderado pelo PS) praticamente não tomaram posição para deslegitimar e desconstituir o texto constitucional de Pinochet e, ainda, o sistema de ensino superior privatizado, a saúde privatizada e o desastroso sistema de aposentadorias.

Mas condições ideológicas e organizativas estão dadas e têm, na Plaza Italia, centro de Santiago, o seu epicentro. As conquistas concretas ainda não foram atingidas. Foram melhoradas. Alguns decretos do presidente Piñera foram aplicados para melhorar parcialmente as condições de vida. O que pode acontecer, num processo constituinte, se não tiver uma participação intermediada por políticos profissionais, é avançar bastante. Até agora o modelo de convocatória da Constituinte está em aberto e a tendência é, primeiro, um plebiscito tipo SIM ou NÃO – se sai ou não a Constituinte – e, depois, no modelo de convocatória e participação. Assim, Piñera também vai ganhando tempo e sobrevivendo em seu carcomido governo.

O Equador, por sua vez – em que rebeliões populares obrigaram o presidente Lenín Moreno a revogar o aumento no preço dos combustíveis –, tem outro problema gravíssimo, que é uma chantagem de que a estabilidade econômica estaria vinculada à dolarização da economia. O Equador é um país que não tem moeda soberana e utiliza o dólar como moeda corrente. Ainda assim, com a economia dolarizada, o Governo Rafael Correa gerou condições de crescimento no país, mesmo insistindo nessa maldição mineral exportadora, que quase sempre se choca com, por exemplo, os direitos dos povos originários, os direitos indígenas e as áreas de preservação.

O que ocorre no Equador é um recrudescimento da perseguição jurídica posterior à rebelião que quase conseguiu derrubar o governo de Lenín Moreno. A rebelião ainda conseguiu derrubar o decreto 887 e também conseguiu reverter pelo menos a piora de condição de vida. Apesar de a repressão estar vindo muito forte, há uma reorganização social que vem de fora para dentro, do campo para a cidade, da população indígena para a urbana. É pertinente lembrar que a Confederação Indígena (Conaie) rompeu com o correismo desde 2010 e tem uma agenda própria e desvinculada do ex-presidente no exílio.

Já a Venezuela, exemplo crítico de crise econômica, humanitária e política, deve seu colapso especialmente à tradição mineral exportadora, que a transformou em uma economia muito dependente do petróleo, não chegando a ter a capacidade instalada necessária para se industrializar plenamente e sequer produzir todo o alimento que consome.

A crise da Venezuela também tem muito a ver com as medidas de punição, de bloqueios econômicos, congelamento de contas, isolamento do sistema de trocas financeiras, impostos pelos Estados Unidos ao governo venezuelano, desde a administração Bush Filho (e que vieram crescendo com Obama e Trump). Com o isolamento e com a perda do poder de compras do bolívar (moeda nacional), a capacidade de importação da Venezuela é muito baixa e, como o país não tem muita produtividade, resulta que o maior negócio da Venezuela é o contrabando. Então, o “mercado branco” – ironia –  costuma gerar uma inflação terrível.

No âmbito político, a crise venezuelana se dá a partir de abril de 2002, quando a direita que perdeu na urna se depara com uma constituição bolivariana, na qual ela é diretamente atingida e a maioria da população é beneficiada. Naquela tentativa de golpe de 2002, já havia crise política, que, de lá para cá, veio crescendo. A crise política só não está pior na Venezuela graças ao fato de que a oposição venezuelana é uma caricatura mafiosa que não se entende como um todo. Sempre tem uma parcela que aceita negociar com o governo, que é o que está acontecendo agora, inclusive com a possibilidade de libertação de presos políticos.

Guerra híbrida e as mídias

Há uma guerra híbrida em curso na América Latina. A guerra híbrida, guerra irregular, guerra de quarta geração, entre outras denominações, tem origem na projeção de poder dos Estados Unidos, que acabam desestabilizando sociedades nas suas periferias. Essa projeção de poder implica num conjunto de ações que vão ao encontro de interesses da superpotência, aplicando métodos de mobilização social e de instabilidade política, mas necessariamente tem também parceiros aliados e protagonistas locais. O Brasil foi um caso de guerra híbrida que começou no segundo turno de 2014, assim como em outros países da América Latina.

A guerra híbrida em sua operação mais recente – a partir, especialmente, da administração do Governo Trump –, visa a acionar corações e mentes através das mídias e redes sociais para os temas da corrupção moderna. No Projeto Pontes, por exemplo, a guerra híbrida colocou a Lava Jato em metástase, incidindo sobre o contrato de empresas brasileiras em vários países da América.

Nesse processo, o papel dos grandes conglomerados privados de comunicação é muito forte, mesmo com a influência das redes sociais, de grandes influenciadores digitais, dos circuitos da extrema direita que correm em paralelo aos grandes grupos de mídia. Teria sido impossível, por exemplo, grupos como MBL, Vem pra Rua e outros movimentos da nova direita a favor do impeachment ganharem relevância sem a projeção dos grupos de mídia e sem a falta de exercício jornalístico.

Um exemplo foi difusão da conversa entre a ex-presidenta Dilma com o ex-presidente Lula. Se não fosse a difusão da conversa – com o tipo de cobertura sensacionalista que foi feita, sem nem falar que aquilo ali era um crime –, o golpe não teria tido efeito. A Lava Jato alimentou progressivamente as redações dos telejornais e, em específico, da Rede Globo, com controversos vazamentos.

É preciso que haja exercício jornalístico, a busca do contraditório e precisão naquilo que se difunde. Propaganda e panfleto (não importando suporte e linguagem) são muito importantes, mas só o jornalismo e o espaço público midiático de baixo para cima garantem a democracia de base e o protagonismo das maiorias.

Traduzindo: sem democracia na comunicação não há democracia nenhuma. Mesmo em período de guerra cibernética, onde as redes têm um peso muito grande, elas também repercutem o que circula na grande mídia. Ou seja, é impossível fazer política sem o aparelho midiático, e é impossível ter democracia sem a democratização da comunicação.

Mobilizações populares

Quando vemos mobilizações populares da intensidade do Haiti, que continua em conflito civil contra um governo a favor do FMI (aliás, o maior volume de mortes no segundo semestre de 2019 está no Haiti, dentre os países que estão em rebelião popular na América Latina e no Caribe); depois, no Equador; logo após, no Chile; no intervalo, na Bolívia; e mais recentemente, a greve geral na Colômbia; todas as mobilizações populares não se dão de maneira espontânea, não é uma convulsão. Elas ocorrem porque muita gente chega às convocatórias, mas a base de quem convoca é muito organizada e tem uma profunda inserção social com algum grau de legitimidade, de alto para médio. Do contrário, seria impossível.

Sem a população organizada, com disposição de luta e capacidade de realização de grandes atos públicos, a capacidade de manipulação e de internalização de interesses externos das potências é gigantesca. Logo, a chance que os povos latino-americanos, nossos países, nossos territórios têm de se libertar da influência externa é nenhuma.

Se toda a esquerda se subordina à centro-esquerda e coloca sua energia no exercício do poder político burocrático, em rechear os espaços vazios no aparelho do Estado, não sobrará energia e, então, o povo sempre perderá.

Depois, é preciso admitir os limites do jogo democrático burguês na América Latina. Mesmo um partido reformista com propostas sólidas, se chegar ao poder pelo voto ou por uma coalizão, tem de levar em consideração, o tempo inteiro, que pode ser derrubado. A única certeza na política latino-americana é a incerteza gerada pela virada de mesa, a presença do imperialismo dos EUA, o acionar entreguista e anti-popular das elites econômicas e a fragilidade diante da presença cada vez maior do capital chinês.

A dimensão da estabilidade e instabilidade na América Latina não é um problema, é um sintoma. O problema é a continuidade e a descontinuidade dos projetos populares. Desde a independência formal de nossos países, é assim. É preciso entender que existem limites muito curtos dentro da institucionalidade.

Mas, enfim, há uma agenda positiva? Evidente!

Uma delas é a defesa dos territórios. No caso brasileiro, de territórios de populações tradicionais, de indígenas, quilombolas. Se somarmos tudo, é cerca de 40% de território brasileiro. É muita terra, muita área preservada, áreas onde não existem práticas de modus vivendi capitalistas, e isso é inegociável. Então, o que a esquerda ainda classista e com disposição de luta deveria fazer é militar. Militar socialmente, fazer política na base social – e não para ela ou apesar dela. Este é o primeiro ponto necessário.

Outro ponto seria buscar saídas econômicas do capitalismo dentro do próprio capitalismo. Do contrário, a disputa se dará sempre na urna, podendo ganhar e não levar, levar primeiro e perder depois etc. Então, é importantíssimo ter debate de autogestão, de moeda social, de sistemas de trocas e, urgentemente, da Moderna Teoria Monetária (MMT).

Precisamos acabar com a mentira fiscalista, esta mentira deslavada do rentismo, dos supostos economistas neoclássicos, de que o excesso de moeda gera inflação. Isso não é um capricho acadêmico, mas algo que pode gerar muita riqueza, mesmo no capitalismo periférico. Se nos rendermos às mentiras fiscalistas, não temos como sair da armadilha do austericídio. Esse seria, de todos os debates, aquele que poderia unificar todo mundo, dos que vão do nacionalismo à extrema esquerda – nacionalista ou não –, e a luta dos povos organizados em toda a América Latina.

Anne Ledur é jornalista formada pela UFRGS e especialista em comunicação visual na Itália ([email protected])

Bruno Lima Rocha é pós-doutorando em economia política, doutor e mestre em ciência política e professor universitário nos cursos de relações internacionais, jornalismo e direito; graduado em  jornalismo, editor do portal Estratégia & Análise

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Written by el Coyote