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Lutas Urbanas na Grécia – O Direito à Cidade na Era da Austeridade

O Direito à Cidade na Era da Austeridade
Ilustração de Ioannis Ikonomakis.

Na Grécia, a resistência à austeridade compreende um mosaico de lutas pelo direito à cidade, concebidas como a autodeterminação coletiva do cotidiano.

por Theodoros Karyotis (traduzido de roarmag.org/magazine/right-city-age-austerity/)

Ao falar sobre a Grécia e “a crise”, é fácil cair na armadilha do “excepcionalismo grego”. Afinal, é através da essencialização das narrativas orientalistas que a austeridade e o ajuste estrutural foram justificados: os gregos são corruptos, preguiçosos e propensos às crises, e eles devem ser moldados e civilizados para o seu próprio bem. Há, no entanto, um outro lado da moeda nesse olhar orientalista que atribui qualidades extraordinárias a eles: os gregos têm um excedente de coletivismo, um zelo revolucionário ou solidariedade, que os torna mais propensos a se organizar e resistir.

Ambas as narrativas nos impedem de ver que as condições que provocaram a “crise grega” são também prevalentes em muitas partes do mundo, que o capital está se movendo para políticas de exclusão e destituição mesmo no centro capitalista, e que essa resistência não é a prerrogativa dos povos do sul, mas em breve será a única resposta razoável mesmo no norte. Na verdade, a “crise grega” não é nem “grega” – já que é apenas um sintoma da mudança do capitalismo global para um novo regime de acumulação baseado em choques e destituições – nem é uma “crise” no sentido de uma evento extraordinário. Ao contrário, a Grécia tem sido um ponto privilegiado para se observar como essa mudança de paradigma global se desenrola dentro dos limites de um único estado-nação.

Ilustração de Ioannis Ikonomakis.
Ilustração de
Ioannis Ikonomakis.

Para entender o funcionamento interno do regime de “acumulação por destituição”, teríamos que concentrar nossa análise não apenas na macroeconomia, negociações, eleições, referendos, protestos e outros eventos espetaculares, mas também – e especialmente – no nível micro da vida cotidiana na cidade. O espaço urbano é sempre uma cristalização de relações de poder mais amplas; é constantemente formado e reformado por poderes políticos e econômicos para garantir o controle das populações que a habitam, facilitar a sua exploração ou exclusão e restringir suas possibilidades de empoderamento. O espaço urbano, no entanto, também pode se tornar um lugar de convivência – um lugar onde os laços sociais e as comunidades são formadas, onde o bem comum aparece. Em última análise, pode se tornar um lugar de resistência e autodeterminação, um lugar de inclusão; inclusão não só no sentido de direitos formais concedidos por uma instância de poder, mas no sentido de plena participação de todas as diferentes identidades e matérias da vida política, econômica e social.

A grilagem de terras, as obras inúteis de infra-estrutura, a gentrificação e reformulações urbanas, a mercantilização das necessidades humanas básicas como habitação, alimentação, água e saúde, despejos e higienizações, a xenofobia, a militarização e o aumento da vigilância são elementos centrais das políticas de destituição, implementadas no interior do espaço urbano às custas das classes mais populares. A resistência a tais políticas inclui um mosaico de lutas por um “direito à cidade”, concebido não como garantia de recursos ou oportunidades individuais, mas como afirmação da autodeterminação coletiva da vida cotidiana.

UMA BREVE HISTÓRIA DO ESPAÇO URBANO NA GRÉCIA

Para entender as lutas urbanas que proliferaram na Grécia desde 2008, devemos entender o processo de formação das cidades da Grécia na segunda metade do século XX. As cidades gregas cresceram na década de 1950, quando a rápida industrialização combinada com a destruição e animosidade deixadas pela Guerra Civil (1946-1949) levou a população rural aos centros urbanos. As leis de planejamento frouxas, juntamente com acordos legais que permitiram que os pequenos proprietários erguessem prédios altos – em última instância, em benefício das empreiteiras e seus clientes políticos – são fatores que determinam a paisagem urbana até hoje.

Esse tipo de desenvolvimento representou um processo inicial de cerceamento que corroeu as comunidades tradicionais, mercantilizou a habitação e promoveu uma forma peculiar de “isolamento entre a multidão de outros”. Os centros da cidade e os bairros populares são caracterizados hoje pela alta densidade populacional, ruas estreitas e falta de espaços abertos e instalações públicas. Nas décadas do “bem estar” dos anos 1990 e 2000, uma “afluência” impulsionada por endividamento levou as classes médias para os subúrbios. Enquanto isso, os esforços de gentrificação estavam em andamento, culminando no “frenesi de construção” dos Jogos Olímpicos de Atenas de 2004, quando projetos extensivos de renovação urbana criaram mais oportunidades de acumulação para elites, enquanto promoviam a remoção, a exclusão, a repressão e a vigilância para os pobres urbanos.

As lutas para reivindicar o espaço urbano ocorreram de forma proeminente em dezembro de 2008, quando o assassinato a sangue frio de um jovem pela polícia provocou uma onda revolta de um mês que se espalhou como um incêndio pelo país. Estudantes secundaristas e universitários, imigrantes e os jovens urbanos sem direitos civis tomaram as ruas protestando contra a alienação urbana, exploração e exclusão que se escondia debaixo de uma fachada de prosperidade. As diferentes identidades dos participantes foram fundidas em um sujeito coletivo “anônimo” que começou, à medida que a revolta progredia, a transformar ativamente a cidade através de ações descentralizadas – muitas vezes simbólicas – de reapropriação do espaço urbano, como ocupações de edifícios públicos, barricadas, marchas, danças improvisadas e performances teatrais nas ruas, a interrupção dos eventos oficiais e a interrupção do tráfego e da atividade comercial. Uma característica distintiva era a falta absoluta de demandas formais; os manifestantes não estavam lutando por direitos ou reformas, mas pela oportunidade de viver com dignidade e autodeterminação, para conectar seus desejos com a realidade.

Embora este tenha sido um evento histórico, devemos ter cuidado para não idealizar a revolta de dezembro. Apesar da fusão das identidades, a natureza violenta e espetacular dos protestos privilegiou uma forma específica de identidade – jovens, destemidos e no vigor da saúde – e que impediu a criação de espaços de inclusão para pessoas de outras categorias sociais – famílias, mulheres idosas e imigrantes – que podem ter tido o mesmo tanto de motivo para estar com raiva.

No entanto, o “grito” coletivo de dezembro de 2008 foi um alerta para uma sociedade adormecida e complacente, e deixou um legado de cooperação social e uma esfera pública redefinida. Milhares de coletivos nasceram, de grupos políticos a conjuntos de arte até sindicatos de raízes de base. Uma nova geração de jovens politizados foi educada em táticas de horizontalismo, solidariedade e ação direta, e novas práticas espaciais foram adotadas pelos movimentos sociais, culminando na propagação de ocupações autogestionadas e centros sociais em todos os cantos do país.

Arte de rua representando uma moeda do euro. Arte de Aquiles, foto de Dimitris Kamaras
Arte de rua representando uma moeda do euro. Arte de Aquiles, foto de Dimitris Kamaras

O Parque Navarinou, por exemplo, faz parte do legado de dezembro. Poucos meses depois da revolta, um estacionamento abandonado foi desenterrado no bairro ateniense de Exarcheia para se transformar em um parque, autogestionado por vizinhos e coletivos e disponível para eventos culturais e sociais. Apesar das tentativas de despejo, o parque mantém esse seu caráter até hoje. Mesmo que o vocabulário dos comuns não estivesse generalizado naquele momento, Navarinou representou uma instância inicial da substituição do espaço “público” pelo espaço “comum”; do espaço rígido e asséptico que serve como um terreno neutro entre indivíduos isolados pelo espaço orgânico onde os indivíduos podem se conectar e entrelaçar seus desejos no contexto da comunidade, onde podem negociar os termos de sua coexistência. Esse tipo de comunhão social urbana, anteriormente confinada aos espaços do movimento libertário, passaria a se tornar um modelo para lutas urbanas nos anos seguintes.

A “crise da dívida” que entrou em erupção em 2010 apenas serviu para intensificar os antagonismos sociais existentes e, consequentemente, exacerbou os conflitos sobre o espaço urbano. Enquanto as elites e os meios de comunicação em massa tentavam arrastar a população para uma viagem de culpa coletiva sobre o “viver além de seus meios”, uma operação massiva de engenharia social foi iniciada, projetada para destituir e excluir a maior parte da população. Todos os ativos e a infra-estrutura do Estado foram postas à disposição de quem pagasse mais; os salários, as pensões, os direitos trabalhistas e os acordos de bem-estar social das classes populares foram cortados do dia para a noite; uma espiral recessiva destruiria a espinha dorsal produtiva do país e criaria desemprego e miséria; a tributação regressiva injusta e a crescente dívida das famílias eram o tiro final. As políticas de destituição relacionadas a questões empregatícias encontraram resistência contra essa desvalorização da força de trabalho, mas os conflitos paradigmáticos da era da crise ocorrem no espaço urbano.

CONTROLE ESPACIAL POR PROXY (PROCURAÇÃO)

A narrativa espacial do estado neoliberal envolve sempre uma população “atrasada”, que deve ser “introduzida ao mundo civilizado”. O Estado se coloca como uma força de “racionalização”, que amplia seu controle sobre a cidade e combate práticas “submersas” e “informais”, a fim de trazer a totalidade da população para debaixo do domínio da lei. A realidade, no entanto, é bastante diferente. Em um contexto de injustiça e raiva popular provocada pela reestruturação neoliberal, o papel do Estado é conter resistências, reforçar os processos em curso de exclusão e manter a paz social a qualquer custo. Curiosamente, enquanto o Estado grego empregava muitas práticas repressivas “formais” – aumento da vigilância, perseguição judicial das lutas sociais – recorria em grande parte a caminhos “informais”. Exemplos incluem técnicas brutais de controle de multidões, autuações sistemáticas, espancamento e tortura de ativistas pelas forças da ordem e, mais proeminentemente, novas técnicas de controle espacial por proxy (procuração).

Uma dessas técnicas é a colusão da polícia com o partido neonazista Aurora Dourada para “sitiar” abertamente a cidade. O Aurora Dourada surgiu ao centro das atenções do público quando seqüestrou um “comitê de cidadãos” no bairro central operário ateniense de Ayios Panteleimonas, usando-o como veículo para impor uma “limpeza étnica”. Os imigrantes foram violentamente atacados e expulsos da área por uma turba violenta, as marchas de solidariedade protestando contra o cerco foram atacadas com gás lacrimogêneo pela polícia anti motim, até mesmo as quadras esportivas na praça central foram trancadas e protegidas para que não fossem usadas pelas famílias imigrantes.

Como estamos testemunhando atualmente em todo o Norte Global, ameaças perceptíveis à estabilidade de uma sociedade podem ativar reflexos reacionários e xenófobos. Através de táticas de bate e sopra, o Aurora Dourada aproveitou o colapso do sistema bipartidário que predominava desde a transição para a democracia em 1974. Por um lado, cultivava uma imagem de “Robin Hood” organizando mantimentos, alimentos e doações de sangue “apenas para os gregos” – um tipo de “comunhão social” pervertido e excludente. Por outro lado, começava um reinado de terror, com esquadrões da morte neonazistas que patrulham as ruas em muitos bairros e atacando qualquer pessoa que parecesse “indesejável” – qualquer pessoa que pareça imigrante, homossexual, transexual, radical e assim por diante – isso com a benção ou a participação direta da polícia. A campanha xenófoba durou vários anos, e deixou centenas de vítimas. Foi somente após o assassinato do rapper antifascista Pavlos Fyssas e a subsequente intensificação das táticas antifas descentralizadas pelos movimentos sociais que as ruas poderam ser recuperadas. Sob pressão popular, o Estado decidiu “colocar a coleira” em seus antigos aliados.

Um tipo similar de “controle espacial por proxy” tem sido implementado no caso do bairro de Exarcheia há muito tempo já. A polícia empurra ativamente gangues de traficantes para a área, que tem sido uma duradoura fortaleza urbana do movimento anarquista, em um esforço para erodir os coletivos e comunidades radicais que a povoam. Como resultado, o comércio de heroína corre solto e comportamentos anti-sociais são freqüentes e mafias implacáveis ​​governam seu “território” com um punhos de ferro. Recentemente, os grupos anarquistas decidiram tomar as coisas em suas próprias mãos e expulsar as gangues da Exarcheia organizando guardas de autodefesa para patrulhar o bairro. Embora ainda seja muito cedo para dizer se foi bem sucedido, este é um esforço imensamente complexo, já que o questionamento direto do monopólio da violência do Estado levanta questões espinhosas relacionadas à legitimação social de milícias, responsabilidade coletiva e uso razoável da força.

À luz dos exemplos acima, a idéia de que o Estado neoliberal é um agente de “racionalização” que combate práticas submersas e informais fica desacreditada. Em vez disso, o Estado tem o poder de decidir quais práticas informais serão toleradas ou mesmo promovidas e quais serão perseguidas, de acordo com suas táticas atuais.

À medida que os gastos sociais foram cortadas, os movimentos urbanos entraram uma brecha para promover a auto-suficiência e a resiliência das comunidades locais através de várias iniciativas de solidariedade, especialmente no bairro anarquista da Exarqueia.
À medida que os gastos sociais foram cortadas, os movimentos urbanos entraram uma brecha para promover a auto-suficiência e a resiliência das comunidades locais através de várias iniciativas de solidariedade, especialmente no bairro anarquista da Exarqueia.

CONVERGÊNCIA E DIVERGÊNCIA DE LUTAS

À medida que a crise se aprofundava, um momento que definiu a política de base na Grécia foi a ocupação das praças pelos “indignados” a partir de maio de 2011 em diante, concomitante ao movimento espanhol dos 15M. Uma multidão de indivíduos de diferentes origens e interesses – e de acordo com algumas estatísticas, um em cada quatro gregos – participaram das ocupações e assembléias. Esta diversidade foi certamente uma vantagem, pois permitiu a osmose entre diferentes grupos e indivíduos e o surgimento de iniciativas e práticas inovadoras. No entanto, a presença – minoritária – de discursos nacionalistas e a ausência de “classe” como estrutura analítica levaram alguns ativistas radicais para longe das praças.

Apesar dessas discrepâncias e da dificuldade admitida pelos indignados em se auto-identificar como um “movimento”, a influência das praças em relação às práticas espaciais e à produção de comunhão social urbana tem sido crucial. Após a emergência das praças, surgiu uma grande quantidade de assembléias de bairro locais. Suas prioridades não eram mais para influenciar os desenvolvimentos no estágio político central, mas para se auto-organizar e se defender contra o iminente ataque aos padrão de vida popular – promover a auto-suficiência e a resiliência nas comunidades locais, preenchendo as lacunas deixadas pela recuada do Estado de bem-estar social e combater a pobreza e o desemprego através da promoção de esforços de solidariedade.

No contexto dessa comunhão social urbana promovida pelas assembléias de bairro, as práticas de ocupação adquiriram legitimidade e se tornaram generalizadas. Já não eram apenas manifestantes jovens que ocupavam espaços públicos para transformá-los em bem comum, mas coletivos mistos de jovens e idosos, homens e mulheres, famílias e indivíduos, imigrantes e nativos. Essas práticas são exemplificadas pela ocupação de terras urbanas para se transformar em hortas comunitárias auto-gestionadas. Tal é o caso, por exemplo, da PERKA (“Agricultura Peri-Urbana”) na cidade de Tessalônica e os Jardins Urbanos Autogestionados de Elliniko em Atenas, no terreno de uma base militar abandonada e no antigo aeroporto de Atenas, respectivamente. De acordo com os termos do memorando de acordo entre o governo grego e a Troika de credores estrangeiros, ambos os espaços eram destinados a ser privatizados e desenvolvidos em habitações de luxo e infra-estrutura comercial. Em ambos os casos, amplos movimentos de cidadãos exigiram sua conversão em parques metropolitanos com instalações públicas.

a ágora de Laiki, Exarcheia, Atenas. Foto de Babis Kavvadias / Flickr
a ágora de Laiki, Exarcheia, Atenas. Foto de Babis Kavvadias

As iniciativas de autodefesa de comunidades locais se multiplicaram quando o governo impôs um imposto regressivo sobre a propriedade da terra – zombadoramente chamado de “haratsi”, por sua reminiscência com um desprezível imposto independente de renda, ainda do período otomano  – arbitrariamente cobrado através da conta de eletricidade. Os proprietários de imóveis que não pagavam o imposto tinha seu energia elétrica cortada. Isso era bastante comum em um país onde os salários haviam sido mutilados e um terço da força de trabalho estava sem emprego. Esta medida sádica teria criado uma situação próxima da catástrofe humanitária, se não fossem os comitês de bairro auto-organizados “anti-haratsi”, que ficavam de plantão para reconectar extra-oficialmente a energia para as famílias que não podiam pagar o imposto.

A provisão de alimentos foi outra área importante de autodefesa. Na década anterior, a distribuição de alimentos tinha sido capturada por intermediários com práticas oligopolistas de fixação de preços, o que tornava os alimentos básicos diários inacessíveis ​​para as classes populares, ao mesmo tempo que espremiam a margem de lucro dos produtores de alimentos. O movimento para cortar os intermediários começou com os caminhões de batatas que chegam em praças centrais da cidade para serem vendidos diretamente aos consumidores finais. O “movimento da batata” evoluiu rapidamente para o movimento descentralizado do “mercado de agricultores de guerrilha”, que ocupava terrenos urbanos sem permissão, tentando reunir agricultores e consumidores, apesar da ameaça de despejo, detenção e confronto com interesses arraigados.

A criação da “comunhão social urbana” se estendeu ao setor da saúde, com a criação de uma rede alargada de clínicas de solidariedade autogestionadas; moedas alternativas, principalmente a TEM em Volos, a Syntagma Time Bank em Atenas, a Koino em Tessalônica e duas dúzias mais; cooperativas de consumidores, como a Bios Coop em Tessalônica, que reúne mais de 450 famílias na recuperação da autonomia alimentar; cozinhas solidárias, que oferecem comida gratuita ou de baixo custo, incentivando os sócios a se envolverem na cozinha e na distribuição dos alimentos; e uma multiplicidade de cooperativas de trabalhadores igualitários, principalmente concentradas no setor de serviços, como as que pertencem à Rede de Cooperativas de Trabalhadores de Atenas.

QUE TIPO DE “DIREITO À CIDADE”?

Em um país tão puritano e religioso quanto a Grécia, a importância dos eventos de “visibilidade”, como a Parada Gay ou a Pedalada Pelada (Naked Bike Ride) na reocupação do espaço público para todo o espectro de identidades e práticas alternativas, não pode ser exagerada. Na verdade, esses eventos se tornam regularmente locais de confronto com a Igreja Ortodoxa ou a extrema direita. Esses eventos, no entanto, enfrentam um risco adicional: na medida em que promovem uma concepção individualista do “direito à cidade” e falham ao não adotar uma visão intersetorial da opressão social, eles podem involuntariamente se transformar em um “mercado de nicho” no contexto da reformulação urbana, segundo o qual a diversidade é apreciada, desde que o princípio social primordial ainda seja o de mercado. Na verdade, “diversidade”, “criatividade” e “inovação” são os conceitos fundamentais dos processos de gentrificação que estão em andamento na maioria das cidades europeias. Esses processos de exclusão pressupõem um consumidor de direitos individualizado, ao invés de coletivos ativos que afirmam o direito de autodeterminar a vida cotidiana na cidade.

Para abordar todas essas opressões ao mesmo tempo, o Orgulho Radical (Radical Pride), um evento de orgulho gay “alternativo” que preservou sua autonomia de instituições públicas e patrocinadores corporativos, foi organizado em Tessalônica este ano. O Orgulho Radical ofereceu um quadro rico para entender como gênero, raça, classe, orientação sexual, etnia, idade ou capacidade se cruzam na produção de opressão e exclusão. Procurou assim afirmar ação coletiva e conectar a luta do movimento LGBTQ com outras lutas urbanas.

No que diz respeito à mobilização urbana, no entanto, é necessário salientar que nem todos os processos de baixo para cima são de natureza inclusiva. Notoriamente, a principal tarefa dos chamados “comitês de moradores” é aumentar o valor dos terrenos, pois os membros têm interesse pessoal na valorização de suas propriedades. Na maioria das vezes, isso inclui esforços para manter “indesejáveis” fora do bairro. Não é uma surpresa, então, que os comitês de moradores sejam freqüentemente assumidos por elementos fascistas. De fato, a exclusão e o fascismo são a parte feia e desagradável dos projetos vistosos de renovação urbana e da construção de “cidades modelo”.

Realmente, durante o recente conflito em torno dos refugiados, os “comitês de residentes” xenofóbicos desempenharam um papel dúbio ao protestar contra inclusões deles na vida social. Do mesmo modo, o Estado trata a situação dos refugiados como uma questão de ordem pública e tenta mantê-los isolados em condições deploráveis ​​nos acampamentos, longe dos centros urbanos. Como resposta, os movimentos de solidariedade pacientemente criaram estruturas solidárias para incluir os refugiados na vida social da cidade. O ápice desses esforços foram os abrigos de refugiados ocupados e auto-gestionados que foram criados em Atenas, Tessalônica e outras cidades – várias dos quais foram despejados pela polícia no ano passado.

E QUANTO À MUDANÇA SISTÊMICA?

Até 2013, a construção do projeto hegemônico do Syriza estava avançando a toda velocidade. Quase nenhum movimento permaneceu inalterado pelo desejo do partido de se posicionar como a expressão política de lutas anti-austeridade e monopolizar o conceito de solidariedade. Hoje estamos experimentando o resultado final desse processo: as políticas de destituição são intensificadas sob um governo nominalmente de esquerda, enquanto as resistências foram neutralizadas e a “paz social” – muito desejada pelas elites internacionais e locais – foi garantida. Esta derrota, no entanto, não é o trabalho do Syriza sozinho, mas também demonstra as limitações internas do movimento. Enquanto na Espanha, por exemplo, o desejo das pessoas pela mudança institucional foi amplamente canalizado para o nível local e para as coalizões hegemonizadas pelos próprios movimentos, na Grécia, a dupla influência, por um lado, do movimento anarquista, que é hostil a qualquer tipo de envolvimento com as instituições e, por outro lado, de uma rígida esquerda parlamentar e extraparlamentar, que em sua mentalidade estatista não percebe a importância das formas participativas locais de governo, impediu o surgimento de iniciativas municipais independentes.

Em 2014, o observatório municipalista dimotopia.gr (agora extinto) identificou 17 formações municipais independentes que tinham a democracia direta como elemento central do seu programa. Alguns anos depois, poucos conseguiram obter representação. Muitos asseguraram o apoio do Syriza; Isso lhes deu um impulso eleitoral, à custa de serem gradualmente assimilados por políticos profissionais e perdendo seu caráter popular. Um desses casos é a formação “Resistência com os cidadãos” no município de Chalandri na região ateniense. Depois de passar muito tempo como um partido de oposição minoritário, conquistou a prefeitura em 2015. Dois anos depois, muitos de seus membros de longa data renunciaram, denunciando o novo prefeito por transgredir os princípios fundamentais da formação e alinhar-se com as políticas de austeridade do governo.

É muito cedo para dizer se o movimento municipalista em Espanha teve influência significativa nas políticas institucionais – fortes debates e críticas foram geradas sobre esta questão dentro do próprio movimento. No entanto, podemos argumentar que, na Grécia, o déficit de coordenação política de base – eleitoral ou não – facilitou a continuação das políticas de austeridade. Embora a suspeita de grande parte dos movimentos em relação à política eleitoral seja compreensível, em nenhum caso isso deve ser traduzido em relutância em organizar, cooperar, se comprometer, ampliar, buscar alcance social ou participar de forma determinada no diálogo público. Não há mérito em parcialidade, marginalidade ou pureza ideológica.

Os primeiros anos da crise trouxeram uma profunda deslegitimação do sistema político e dos seus satélites – partidos políticos, sindicatos, meios de comunicação de massa – bem como a dissolução das identidades formadas em torno do status social, do trabalho ou do consumo. Isso produziu não apenas depressão e resignação, mas também uma explosão na mobilização de base que afetou a vida de muitos e criou estruturas, coletivos e práticas para recuperar a cidade para uma diversidade de temas. No auge dessas mobilizações, houve otimismo generalizado de que a mera acumulação de recursos comuns urbanos seria suficiente para mudar radicalmente a paisagem urbana e criar um contrapoder social suficiente para desafiar efetivamente os processos de destituição.

Na fase seguinte, os movimentos de base foram confrontados com a inevitável questão de coordenação política e mudança institucional, e foram chamados a posicionar-se em relação ao projeto hegemônico desenvolvido pelo Syriza. Alguns se identificaram com o projeto e foram assimilados por ele; outros adotaram uma posição cautelosa, mas pragmática, tentando negociar benefícios políticos sem comprometer sua identidade; outros ainda denunciaram o projeto do Syriza e se distanciaram, mas sem produzir uma forma alternativa de coordenação política. Este foi um momento de intenso conflito e debate.

Na fase atual, as esperanças de mudanças institucionais foram mutiladas, os movimentos de base perderam seu caráter de massa e os coletivos restantes entraram em um processo de reflexão e redefinição da estratégia. Um ponto-chave a destacar em tais reflexões é a importância das lutas urbanas de base durante a crise, levando em conta não apenas as ameaças externas que enfrentam – repressão e cooptação -, mas também suas limitações internas: sua natureza contraditória, suas divergências ideológicas, a dificuldade em encontrar um vocabulário comum, na coordenação e na formação de um tema político coerente. Essas deficiências, no entanto, não devem ser percebidas como uma falha, já que o ciclo de divergência e subordinação nunca é um jogo de soma zero. Há um “transbordamento” que persiste e forma o substrato do ciclo seguinte de mobilização. Esse transbordamento inclui idéias, práticas, valores e possibilidades de ação que não existiram há apenas uma década atrás, além de uma nova voz no discurso público, que prioriza a cooperação social e a autodeterminação.

Theodoros Karyotis é sociólogo, tradutor e ativista que participa de movimentos sociais que promovem a autogestão, a economia solidária e a defesa dos bens comuns. Ele escreve sobre isso em autonomias.net .

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Written by Mauro Cardoso

Médico Epidemiologista e Estatístico, atua na área de saúde pública estudando os cavaleiros do apocalipse: a peste, a fome e a guerra.